O Desaparecimento de Suzumiya Haruhi
Tradução: kwijibo Revisão: GardenAll - S.O.S. DanBrasil
Capítulo 2: [Download]
O dia 18 de dezembro acabou com uma desconfortável sensação de estar preso por todos os lados em um tubo de cola, e assim, o próximo dia veio.
19 de dezembro.
De hoje em diante, teríamos aulas mais curtas. Essa pausa deveria ter surgido muito antes, mas há pouco tempo atrás nossa humilde escola foi atropelada por uma escola rival nos resultados do exame nacional. Nosso diretor estava cuspindo fogo e instituiu mudanças forçadas no nosso sistema, com o propósito de aumentar o desempenho acadêmico. Parece-me que a história não muda, afinal.
Porém, não havia nada além de mudança ao meu redor, tanto na minha escola, quanto na Brigada SOS. Como se tivesse sido capturado em uma armadilha ardilosa, fui para aula apenas para descobrir que mais alunos da sala 1-5 não estavam ali. Taniguchi estava nessa lista, provavelmente de cama com uma febre de 40 graus.
E assim, no dia de hoje, Asakura continuava sentada atrás de mim, no lugar de Haruhi.
―Bom dia. Você está mais desperto hoje? Espero que seja este o caso.‖
―Veremos.‖
Coloquei a bolsa sobre a minha mesa com uma cara inflexível. Asakura apoiava seu queixo sobre as mãos.
―Mas estar apenas com os olhos abertos não garante que você não esteja sonhando. Ter um controle firme da situação à sua frente é o primeiro passo para entender. Como você está? Lidando bem com a situação?‖
―Asakura.‖
Inclinei-me para frente, lançando um olhar afiado para o rosto bem modelado de Asakura Ryouko.
―Diga-me de uma vez. Você simplesmente não se lembra ou está bancando a idiota? Sabe que você já tentou me matar antes?‖
O rosto de Asakura subitamente se tornou pesado, com o olhar exato de alguém que encara um paciente insano.
―... é, me parece que você ainda não acordou. Ouça o meu conselho: vá logo ver um médico antes que seja tarde demais!‖
Ela fechou seus lábios e, dali em diante, me ignorou completamente, enquanto conversava com uma garota próxima.
Virei-me para frente e, com meus braços cruzados, encarei intensamente o ar ao meu redor.
Vamos colocar as coisas em outra ótica.
Digamos que exista alguém extremamente infeliz. Essa pessoa tem sido espetacularmente infeliz, não importa se vemos isso objetivamente ou subjetivamente. A natureza dessa pessoa é, sem duvidas, a personificação de todo o azar e infelicidade, a ponto que até mesmo o velho príncipe Siddhartha [1], que se tornou um mestre iluminado teria de afastar os olhos dessa pessoa. Um dia, ele (essa pessoa pode também ser um ―ela‖, mas vamos assumir que seja ―ele‖, para encurtar a história e evitar problemas) acabou adormecendo, atormentado pela sua miséria usual, e no próximo dia, quando ele acorda, o mundo simplesmente virou de pernas para o ar. Este mundo se transformou em algo maravilhoso, tão incrível que até mesmo a palavra ―Utopia‖ não faria jus à ele. Nesse mundo, toda a sua infelicidade fora dizimada, e seu corpo e espírito, da cabeça aos pés estão repletos de alegria em todos os aspectos. E como mais nada de ruim cairia sobre os seus ombros, só poderíamos concluir que alguém levou essa pessoa do inferno ao paraíso em uma única noite.
1-[Nota do tradutor: Sidarta Gautama foi um professor espiritual da região nordeste da Ásia Meridional que fundou o Budismo].
É claro, a vontade dessa pessoa não é nem discutida aqui. Ele é levado por alguém que desconhece, por um motivo completamente obscuro. Não se sabe o que ele fez para que isso acontecesse, e talvez só Deus saiba.
Então, nesse caso, essa pessoa deveria ser feliz? Ao mudar o mundo, toda a infelicidade dele foi apagada. Porém, esse mundo continua sendo diferente do original, e o mistério por trás de todas essas mudanças permanece ali.
Assim, nesse cenário, usando nossos critérios conhecidos, para quem essa pessoa devia expressar a sua gratidão?
Dito isso, essa pessoa não sou eu. Posso afirmar que as coisas são bem diferentes.
Pensando bem... é uma analogia bem ruim para o meu caso, eu acho. Não era a pessoa mais infeliz do mundo até ontem, e tenha certeza que atualmente não sou o pináculo da felicidade entre todas as pessoas.
Enfim, ignorando o problema do exagero, a analogia se torna um pouco mais tolerável, quase exata, para ilustrar o meu argumento. Meus nervos estavam se despedaçando pelos constantes acontecimentos bizarros ao redor de Haruhi, e agora, tudo isso perdeu completamente a relevância para mim.
Mas há um porém—
Aqui, não existe nenhuma Haruhi nem Koizumi, a Nagato e a Asahina são pessoas comuns, e a própria existência as Brigada SOS tornou-se nada. Sem aliens, espers ou viajantes do tempo. Acima de tudo, sem gatos que falam. É, simplesmente, um mundo ordinário.
Mas e então?
Que mundo é o mais apropriado para mim? Que mundo mais me satisfaria? O mundo como era até pouco tempo? Ou o mundo de agora?
Será que eu estou feliz agora?
Depois da aula, meus pés seguiram no piloto automático para a sala de sempre do Clube de Literatura, uma típica ação reflexa – onde o corpo se move sem o cérebro perceber, fruto de uma repetição diária dessa mesma ação. É a mesma coisa quando se toma um banho. É claro que não existe uma seqüência predeterminada de como você vai se ensaboar, mas de tempos em tempos certo padrão acaba sendo repetido todas às vezes.
Todos os dias, assim que as aulas terminam, vou em direção a sala da Brigada SOS, beber o chá preparado por Asahina-san, e jogar alguma coisa com Koizumi, enquanto ouço a infinita baboseira delirante de Haruhi. Talvez por ser um mau hábito, que seja tão difícil o deixar de lado, mesmo que eu tenha consciência disso... exatamente por ser um mau hábito.
Porém, tenho de dizer que o ambiente de hoje é um tanto diferente.
―O que diabos eu devo fazer com isso?‖
Olhava intensamente para o papel em branco enquanto caminhava. Nagato me deu isso ontem, me encorajando timidamente a juntar ao Clube de Literatura. Mas eu simplesmente não consigo entender, por que eu? Será porque o clube não tem mais nenhum membro e está prestes a ser fechado? Mas é muita coragem da parte dela me recrutar, alguém que literalmente surgiu do nada e a atacou. Provavelmente, mesmo nesse mundo errado, a única pessoa que não muda a sua lógica peculiar é Nagato.
―Agh!‖
Enquanto andava pelo prédio dos clubes, passei por perto da dupla formada por Asahina e Tsuruya. Asahina-san literalmente recuou quando me viu passando, se agarrando fortemente a Tsuruya-san. Atordoado por aquela linda reação que ela teve ao me ver, dei um breve aceno e corri para longe. Por favor, deixe os meus dias comuns voltarem, assim posso aproveitar o meu néctar divino outra vez!
Dessa vez bati, só assim poderia abrir a porta. Esperei um pouco e ouvi uma resposta suave.
Nagato passou os olhos sobre o meu rosto e voltou ao livro que estava em suas mãos. Seu movimento ajeitando os óculos parecia ser uma saudação.
―Você não se importa de eu ter voltado para cá?‖
Seu pequeno rosto acenou firmemente. Apesar disso, seus olhos continuavam vidrados no livro à sua frente, não se dando nem ao trabalho de levantar a cabeça.
Coloquei a minha mala em um canto, e quase que imediatamente meus olhos saltaram procurando algo para fazer. Porém, nessa sala impessoal, não havia nenhuma engenhoca ou algo estranho com o que me ocupar. Minha única escolha repousava sobre a estante.
Todas as prateleiras estavam cheias de livros de todos os tamanhos. Muitos deles grossos e de capa dura, pelo menos muito mais do que os romances ou outros livros sem tanto cuidado, acho que isso tem muito a ver com a preferência pessoal de Nagato por leituras mais pesadas.
Silêncio.
Devia já estar acostumado a isso, mas hoje, esse silêncio estava imbuído de uma carga tão opressiva que chegava a ser doloroso. Se não fizesse nada a respeito, as coisas continuariam terrivelmente desconfortáveis
―Todos estes livros são seus?‖
A resposta veio quase que imediatamente.
―Alguns já estavam aqui antes de mim.‖
Nagato me mostrou a capa daquele grosso volume que estava lendo.
―Esse é emprestado. Da biblioteca publica.‖
Em sua lateral estava uma etiqueta em código de barra que mostrava a propriedade da biblioteca sobre o livro. A luz fluorescente se refletiu no adesivo laminado, fazendo os óculos da inexpressiva garota brilharem por um segundo.
E fim de conversa. Nagato voltou a sua desafiadora leitura silenciosa, enquanto eu lentamente perdia o meu lugar na existência.
Certamente esse silêncio era sufocante. Procurei algo para dizer, nem que fossem apenas palavras aleatórias.
―Você escreve também?‖
Depois disso, mais três quartos de momento em silêncio.
―Apenas leio.‖
Seus olhos se agitaram em direção ao computador por alguns segundo, antes de se esconder novamente sob as lentes, mas não rápido o suficiente para escapar aos meus olhos. É isso, certamente é isso que ela estava tentando esconder antes de me deixar usar o computador. Repentinamente, me surgiu uma vontade irresistível de ler a história de Nagato. O que ela teria escrito? Talvez ficção científica. Com certeza não seria uma história de amor, seria?
― ... ‖
Era difícil manter um diálogo com Nagato, em primeiro lugar. Apesar disso, essa Nagato não era muito diferente.
Reiniciei a minha operação silenciosa pela estante.
Por algum motivo, meus olhos pousaram sobre a lombada de um livro.
Era um titulo familiar. Na época da criação da Brigada SOS, Nagato havia me emprestado o primeiro volume de uma extensa serie de ficção cientifica, um livro com uma quantidade assustadora de palavras. Agora que estou me recordando dessa época, lembro-me de como Nagato, ainda uma garota de óculos, me empurrou esse livro sem espaço para nenhuma desculpa. ―Fique com isso‖, ela me arremessou essas palavras antes de sair rapidamente de cena. Tomou-me umas boas semanas para ler aquela coisa. Mas, para mim, já parecem anos que isto aconteceu. Muitas coisas ocorreram nesse meio tempo.
Estranhos e nostálgicos sentimentos cresceram dentro de mim, me impelindo a tirar o livro da estante. Não estava simplesmente dentro de uma livraria, folheando para ver se ia gostar, então não é como se fizesse algum esforço real para ler aquilo tudo. Virei as páginas a esmo e, quando estava para colocar o livro de volta no seu lugar, um pequeno pedaço de papel retangular caiu ao lado dos meus pés.
―Hmmmm?‖
Eu o apanhei prontamente. Era um marcador com um padrão floral. Parecia ser daqueles que as livrarias entregam de brinde nas compras – espere ai, um marcador?
Era como se o mundo estivesse girando em torno de mim. Ah... aquela vez... eu abri o livro no meu quarto... encontrei o mesmo marcador... e sai correndo com a minha bicicleta... aquelas palavras ficaram grudadas no fundo da minha mente.
Sete horas, estarei esperando no parque ao lado da estação.
Segurando meu fôlego, girei o marcador entre as minhas mãos – e então vi.
―Condição de execução do programa; coletar as chaves. Tempo limite: dois dias.‖
A sentença era como uma mensagem do passado, escrita em uma fonte precisa como a de um computador.
De uma só vez, me virei rapidamente para a mesa onde Nagato estava, alcançando-a em três passos. Fixando meu olhar naquelas pupilas negras, perguntei; ―Foi você que escreveu isso?‖.
Encarando fixamente o verso do marcador que eu segurava em sua frente, Nagato abanou sua cabeça confusa enquanto respondia; ―É parecida com a minha letra. Mas... não me lembro de ter escrito isso.‖
―... entendi. Como eu pensava. Está tudo bem, seria estranho se você soubesse. Tem algo me incomodando, mas não se preocupe com as baboseiras que eu estou falando, de verdade...‖
Enquanto essas desculpas esfarrapadas saiam da minha boca, sentia que a minha mente estava prestes a voar para longe.
Nagato.
Essa é uma mensagem sua, não é? É só uma frase de uma só linha, mas estou feliz por isso. Posso considerar isso um presente da Nagato que conheci por tanto tempo? Será que essa é uma pista para consertar toda essa situação maluca? Se não é, por que mais você escreveria esse bilhete tão parecido com um manual de instruções?
Condição, programa, chaves, tempo limite, dois dias.
... dois dias?
Hoje é dia 19. Será que devia contar dois dias a partir de agora? Ou eu devo contar a partir de ontem, quando o mundo enlouqueceu? Na pior das hipóteses, o tempo acaba amanhã, no dia 20.
A surpresa gradualmente esfriou como o magma lentamente endurecendo sobre a crosta da terra. Não sei de mais nada, mas acho que vou ter que juntar algumas chaves para executar esse programa. Mas o que diabos são essas chaves? Onde elas estão, e quantas são? Quando eu juntar todas elas, eu as trago de volta e troco por um brinde?
Pontos de interrogação infestaram a minha cabeça, finalmente se juntando em uma grande pergunta final.
Se eu executar esse programa, o mundo vai voltar ao normal?
Apressadamente tirei os livros da estante, procurando de cabo a rabo se haviam outros marcadores escondidos. Sob o olhar surpreso de Nagato eu continuei escavando, mas sem resultado. Não haviam outros...
―Só um, então?‖
Bem, colocando em termos, se alguém for ganancioso demais e juntar todos os itens que encontrar, isso só vai acabar o atrasando e o levando de volta ao ponto de partida. Mover-se aleatoriamente é apenas perda de tempo e de HP. Vamos colocar as coisas em prioridades, encontre as chaves. O topo ainda está longe, mas acredito que já conseguir enxergar pelo menos uma indicação da chegada.
Após pedir permissão, desempacotei meu almoço e me sentei diagonalmente a Nagato. Mastigando o meu lanche, também trouxe a tona dezenas de pensamentos. Nagato parecia dirigir seus olhos de vez em quando para a minha direção, mas eu apenas operava mecanicamente meus palitinhos, concentrado na tarefa mais urgente – continuar alimentando as minhas células cerebrais com nutrientes.
Enquanto o tempo passava, o meu almoço se esvaziava. Estava prestes a pedir um pouco de chá, quando percebi que Asahina-san não estava mais entre nós. Estava frustrado, mas continuei a ponderar. Essa era a hora da verdade. Não podia deixar uma pista tão preciosa escapar. Chave, chave, chave, chave...
Por umas duas horas consecutivas, estive imerso ema uma ardente reflexão.
Gradualmente, fiquei cansado da minha própria estupidez, e fui soterrado pelo desânimo.
―Não consigo entender!‖ – me amaldiçoei, em silêncio.
―Chaves‖ era um termo muito ambíguo para começar. Com certeza, não eram chaves de verdade para abrir e trancar, a hipótese mais válida era que fossem coisas como palavras chave ou pessoas chave. Mas o escopo ainda era muito amplo. Era algo, ou uma frase? Móvel ou imóvel? Queria poder perguntar mais pistas desse tipo. Tentei imaginar no que Nagato pensava enquanto escrevia esse marcador, mas a única coisa que conseguia pensar era nela lendo um livro difícil, ou dizendo algo impressionantemente longo – como a Nagato que sempre conheci.
Com um súbito interesse, virei-me para a diagonal e ali estava Nagato, imóvel como se estivesse tirando um cochilo. Talvez fosse só impressão minha, mas ela parecia estar na mesma página, sem progredir. Apesar disso, como contra-evidência de que ela não estava tirando uma soneca vespertina, suas bochechas enrubesceram quando percebeu que estava sendo observada pelo meu olhar perdido. Ou essa Nagato do Clube de Literatura é terrivelmente tímida, ou simplesmente desacostumada a ter a atenção alheia.
Mesmo sendo idêntica exteriormente, ela continuava reagindo de modo não familiar, o que certamente estimulou os meus interesses. Deliberadamente, fixei meus olhos nela, observando-a.
― ... ‖
Apesar de ter seus olhos focalizados nas páginas, estava claro que ela não conseguia ler uma única palavra escrita naquelas linhas. Nagato inspirava silenciosamente com seus lábios semicerrados, e o ritmo discreto do seu peito expirando pesarosamente logo se tornou visível. O pálido tom rosado de suas bochechas se tornava mais rubro a cada minuto. Para dizer a verdade, Nagato era um pouco – não, melhor dizendo, muito bonitinha. Pensei por um instante que não seria má idéia me juntar ao Clube de Literatura e aproveitar um mundo sem Haruhi.
Mas não, não posso jogar a toalha ainda. Tirei o marcador do meu bolso e o segurei com força, cuidando para não o esmagar. Deixar esse aviso aqui significa que Nagato ainda tem negócios a tratar comigo. Eu mesmo tenho coisas para fazer no meu antigo mundo! Não provei a comida de Haruhi, ainda não consegui fixar a imagem de Asahina-san vestida de Mamãe Noel nas minhas retinas. E o meu jogo com Koizumi foi interrompido enquanto eu estava em vantagem. Se continuasse assim, eu teria vencido, então não têm como eu desistir dos meus justos cem ienes dessa maneira.
O sol poente reluziu pela janela, e a hora dela se esconder atrás dos prédios do campus como uma grande bola alaranjada havia chego.
Cansei de esperar sentado, pois nada de bom aparecia em minha cabeça, não importa o quanto eu tentasse. Levantei-me alcançando a minha bolsa.
―Acho que é tudo por hoje.‖
―Tudo bem.‖
Nagato fechou o livro que podia – ou não – estar lendo esse tempo todo, e o colocou dentro da mala antes de se levantar. Será que ela estava esperando que eu dissesse isso?
Peguei minha mala. E, mesmo assim, ela não se movera um centímetro, acho que Nagato ficaria ali para sempre se eu não desse o primeiro passo.
―Ei, Nagato?‖
―O quê?‖
―Você mora sozinha, não?‖
―... sim.‖
Ela provavelmente está pensando em como diabos eu sei de uma coisa assim.
Ia perguntar se ela vivia com a sua família, mas parei prontamente quando vi os seus olhos pesarem subitamente. Memórias daquele seu quarto, praticamente sem mobília alguma, vieram na minha mente. Minha primeira visita havia sido há sete meses atrás, com toda aquela conversa cósmica e telepática que era quase assustadora na sua falta de limites. A segunda visita foi no Tanabata de três anos atrás, onde eu estava com Asahina-san. Pensando bem, a segunda vez foi antes da primeira, se observarmos o fluxo normal do tempo, o que de certo modo é um tipo de conquista para mim.
―Que tal ter um gato? Gatos são ótimos! Eles podem parecer preguiçosos o tempo todo, mas tem vezes que penso que eles conseguem entender o que eu estou dizendo. Não me surpreenderia se gatos pudessem falar. E acredite, não estou brincando quando digo isso.‖
―Animais são proibidos.‖
Depois da resposta, ela se calou por algum tempo, com seus olhos flutuando em tristeza. Como o som do vento em uma fissura nas rochas, ela respirou fundo e falou em uma voz insegura.
―Você quer ir?‖
Nagato olhava para as minhas mãos.
―Onde?‖
E os meus dedos responderam de volta.
―Minha casa.‖
Mais meia nota de silêncio.
―... posso?‖
O que estava acontecendo aqui? Ela é tímida, envergonhada ou agressiva? Essa Nagato tem uma curva psicologia completamente descontinua! Ou será que a mentalidade de
uma estudante normal dos dias de hoje é tão irregular quando a curva de luz da estrela de Mira[2]?
2-[Nota do tradutor: curva de luz é um gráfico onde são plotadas as variações de brilho da estrela no decorrer do tempo. A estrela em questão é Mira, a "Maravilhosa", na constelação da Baleia].
―Claro.‖
Nagato saiu da sala, escapando da minha vista. Ela apagou as luzes, abriu a porta e desapareceu no corredor escuro.
É claro que eu a segui. A casa de Nagato, número 708 em um prédio de luxo. Acho que só vou dar uma espiada na sala de estar. Talvez consiga encontrar algumas pistas por lá.
E se eu encontrar um outro eu dormindo lá, pode ter certeza que vou o acordar usando meus punhos!
Na saída da escola, Nagato permaneceu silenciosa como sempre.
Ela apenas caminhava em linha reta pela ladeira, em silêncio. Com passos inseguros que davam a impressão de que um vento forte e gelado estava rugindo contra ela. Seu cabelo estava bagunçado, agitado pelas súbitas rajadas de vento. Olhando para suas costas, continuei a caminhar mecanicamente. Haviam varias coisas que eu gostaria de falar, mas sentia que era melhor não perguntar porque ela havia me convidado.
Depois de caminhar por algum tempo, Nagato parou na frente do seu prédio. Quantas vezes eu havia vindo até aqui? Duas para ver Nagato, uma para descobrir algo sobre Asakura, e uma vez no terraço? Digitando a senha habilmente na porta de entrada, Nagato abriu o portão e entrou no lobby sem olhar para trás uma só vez.
Ela estava quieta mesmo no elevador. Quando chegamos na porta do oitavo apartamento do sétimo andar, ela inseriu a chave na porta e a abriu devagar, mesmo assim, ela me convidou para entrar fazendo apenas um gesto.
Passei pela porta sem deixar escapar um só som. O arranjo da sala não era muito diferente da minha memória. Era apenas uma sala sem nada de notável. Não havia nenhum móvel na sala de estar a não ser um kotatsu. Como era de se esperar, nem mesmo havia cortinas nas janelas.
E havia o quarto de visitas. Na verdade era apenas um cômodo separado por uma porta de correr.
―Posso dar uma espiada nessa sala?‖
Perguntei para Nagato, que havia isso a cozinha pegar um jogo de chá. Ela piscou suavemente.
―Vá em frente.‖
―Desculpe pela invasão.‖
A porta se abriu, deslizando como se não houvesse nada preso a ela.
― ... ‖
Só haviam alguns tatamis lá dentro.
Bem, eu devia ter adivinhado, não tem como eu ter viajado para o passado tantas vezes.
Coloquei a porta novamente na sua posição original, e mostrei as minhas mãos para Nagato, que observava tudo de longe. Porém, aposto que esse gesto não deve ter significado nada para era. Apesar disso, sem dizer nada, Nagato colocou os dois copos sobre o kotatsu, se sentou com as pernas sob o corpo e começou a despejar chá sobre eles.
Sentei-me em sua frente com as pernas cruzadas, da mesma maneira que havia feito quando a visitei pela primeira vez. Naquela época, eu havia bebido centenas de copos de chá feitos por Nagato, completamente alheio a tudo, enquanto ouvia um monólogo sobre a natureza do universo e todas as coisas. Foi um período de novidades e de um calor brutal, completamente diferente do frio atual. Acho que até mesmo o meu coração está mais fresco agora.
Tomando seu chá em minha frente e em completo silêncio, os olhos de Nagato lentamente desceram para baixo de seus óculos.
Por algum motivo, ela estava hesitando. A sua boca abria e depois de fechava. Ela olhava para mim tentando juntar um pouco de coragem, só para momentos depois forçar sua visão novamente para baixo. Ela repetiu isso algumas vezes, até que conseguiu colocar seu copo de chá de lado, e falar com grande esforço.
―Eu já havia me encontrado com você.‖
E adicionando depois.
―Fora da escola.‖
Onde?
―Você se lembra?‖
Onde?
―Biblioteca.‖
Após ouvir essa palavra, as engrenagens da minha mente voltaram a se mover. E todas as memórias com Nagato voltaram a minha mente. Era a biblioteca que visitamos na primeira busca á mistérios da Brigada SOS.
―Em maio,‖
Seus olhos hesitaram novamente,
―você me ajudou a fazer um cartão da biblioteca.‖
Minha psique havia sido atingida em cheio por um relâmpago, se recusando a funcionar.
... sim. Se não fosse por isso, você ainda estaria ali, em frente às prateleiras! A chamada de Haruhi tomava a forma de pequenas e irritantes ligações, e não acho que haveria outra forma de nos tirar de lá rapidamente.
―Você...‖
De todo modo, Nagato continuou a explicar, e acabei descobrindo que a sua descrição dos fatos não batia muito com a minha. A explicação da garota, usando sua voz fraca e murmurante, foi algo assim;
Mais ou menos na metade de maio, Nagato visitou a biblioteca da cidade pela primeira vez, e ela não tinha idéia de como fazer um cartão. Seria fácil se ela tivesse perguntado para alguém, mas os poucos bibliotecários presentes estavam ocupados. Para piorar, uma pessoa introvertida como Nagato era bastante ruim com as palavras, não conseguindo juntar coragem para perguntar para ninguém; assim, a garota começou a vagar em vão pela biblioteca. Provavelmente cansado de ver algo assim acontecendo, um garoto do ensino médio que estava passando por lá se voluntariou para ajudá-la, realizando os procedimentos em seu lugar.
―Era você.‖
Ela se virou para mim, e nossos olhos se encontraram por menos de um segundo, antes que ela voltasse a encarar o kotatsu seriamente.
― ... ‖
Acho que as reticências foram divididas entre eu e Nagato. E logo o silêncio se mesclou novamente ao vazio da sala, e nem mesmo eu conseguia pensar em nada para dizer. Acho que é porque eu não posso responder sobre algo que não me lembro. Nossas memórias eram levemente diferentes. É verdade que fiz o cartão para ela, mas estava de passagem; no lugar disso, fui eu mesmo que a levei até a biblioteca. Acabei desistindo da dita ―patrulha do mistério‖ que estava certamente fadada ao fracasso, para matar meu tempo na biblioteca. Mesmo que a minha memória seja como a de um bebê anêmona marinha, não tem como esquecer da imagem da quieta Nagato de uniforme.
― ... ‖
Sem saber como lidar com o meu silêncio, Nagato apertou os lábios com uma ponta de tristeza, fazendo círculos ao redor do copo com os seus pequenos dedos. Ao ver aquele leve tremor visível em suas mãos, fiquei ainda mais inseguro com a conversa, engrossando ainda mais o pesado silêncio do ambiente.
Seria mais simples dizer para eu que eu me lembrava, o que de todo modo não seria uma mentira deslavada. Talvez tivéssemos algumas falhas na verdade. E, nesse caso, as falhas que seriam as maiores questões com que eu tenho de lidar.
Por que existe essa diferença?
A alienígena que eu conheci desapareceu para algum lugar, deixando apenas um marcador de páginas.
Ding-dong!
A campainha quebrou a eterna inquietude da sala. Quase pulei com as pernas cruzadas ao ouvir aquele barulho súbito. Até mesmo a própria Nagato estava em choque com a surpresa, se dirigindo rapidamente até a entrada.
Novamente a campainha tocou, trazendo consigo um visitante. Mas, afinal, quem iria visitar a casa de Nagato? Não consigo pensar em ninguém a não ser um entregador ou um coletor de impostos.
― ... ‖
Como uma alma se descolando do corpo, Nagato se levantou e deslizou para perto da parede, sem fazer nenhum barulho. Ela colocou as chaves no painel eletrônico e ouviu a voz de alguém saindo por ele em um chiado abafado. Para então se virar para mim com uma expressão frustrada.
Ela falava baixinho pelo fone, quase murmurando, soltando negativas inseguras como ―Mas...‖ e ―Bem...‖.
―Espere.‖
Aparentemente, Nagato fora derrotada. Ela caminhou até a entrada e destrancou a porta.
―Olha quem está aqui!?‖
A garota forçou a sua entrada com os ombros na porta.
―Por que você está aqui? Isso é uma novidade – Nagato-san trazendo um rapaz para casa.‖
A menina com um uniforme de nossa escola trazendo uma panela com ambas as mãos, habilmente tirando os sapatos ao passar pela soleira da porta.
―Não me diga que você invadiu!‖
Para começar, diga você qual o motivo da visita. Já é surpreendente o bastante ver a sua cara fora da sala de aula!
―Você pode me ver como uma voluntária. E realmente é inacreditável pensar que você estaria aqui.‖
Era a representante de classe que sentava atrás de mim.
Em outras palavras, Asakura Ryouko acabara de entrar.
―Acho que eu fiz um pouco demais. Está tão quente e pesado!‖
Sorrindo, Asakura colocou a grande panela sobre o kotatsu. Se alguém passasse pela loja de conveniência essa época do ano acabaria presenciando esse mesmo cheiro. Será que tem oden [3] ai dentro? Foi Asakura que fez?
3-[Nota do tradutor: Oden é de um prato japonês, consumido mais comumente no inverno, que consiste de vários legumes (como daikon e kon'nyaku), tofu e ovos cozidos imersos em um caldo feito à base de molho de soja e peixe].
―Exatamente. Prefiro dividir coisas assim, afinal não demora muito para fazer em grandes quantidades. Se deixasse Nagato-san sozinha aqui, sem cuidados, ela iria acabar desnutrida.‖
Nagato foi até a cozinha pegar pratos e talheres. O barulho do vidro se chocando suavemente podia ser ouvido ao longe.
―Então? Não vai me dizer o motivo de estar aqui? Estou interessada, sabia?‖
Fiquei sem palavras. Estou aqui porque fui convidado, mas não me pergunte o motivo do convite. Será que foi a história da biblioteca? Poderíamos muito bem falar disso na sala do clube. Pessoalmente, eu só a segui obedientemente porque achei que poderia achar alguma pista do que são essas ―chaves‖ aqui; apesar disso, não posso falar a verdade em voz alta. Só me meteria em mais problemas fazendo-a pensar que tenho algum tipo de problema mental.
Inventei logo uma mentira.
―Bem... é claro. Estava voltando para casa pelo mesmo caminho que ela... sim, fiquei meio confuso com o convite de Nagato para me juntar ao Clube de Literatura, então estávamos conversando durante a saída, mas acabamos chegando ao apartamento dela sem que a discussão chegasse a uma conclusão. Assim, ela me convidou para entrar para que pudéssemos terminar. Não invadi, juro.‖
―Você, no Clube de Literatura? Perdoe-me, mas não acho que isso combina muito com você. Afinal você realmente lê algum livro? Ou por acaso quer ser escritor?‖
―Meu problema é mais voltado ao que eu vou ler ou escrever de agora em diante. Isso é tudo.‖
Ela levantou a tampa da panela, e um aroma sedutor encheu a sala a partir do kotatsu. Os ovos cozidos que flutuavam no caldo estavam com uma cor ótima.
Asakura-san sentou em um dos cantos da mesa com as pernas cruzadas, olhando de maneira suspeita para mim ocasionalmente. Podia ser apenas impressão minha, mas aqueles olhares eram tão afiados que se tivessem massa, eu estaria agora cheio de buracos. Aquela Asakura virou uma assassina sanguinária repentinamente, mas essa Asakura se mantinha impassível, com uma grande confiança enraizada em sua postura nobre. Tinha certeza que aquele oden estava mais delicioso do que qualquer outro. Mas aquela aura colocava tanta pressão em mim que sentia a minha confiança se esvair em diversos aspectos. Estava andando em círculos, nada mais.
Incapaz de agüentar aquilo por mais um segundo, peguei a minha mala e me levantei.
―Oh, você não vai comer com a gente?‖
Confrontando o tom jocoso de Asakura com silêncio, decidi me retirar da sala com passos leves.
―Oh.‖
Quase me choquei com Nagato que voltava da cozinha. Nas mãos dela havia uma pilha de pequenos pratos com hashis, e um tubo de raiz forte descansando sobre ele.
―Estou indo. Desculpe pelo incômodo. Vejo você mais tarde.‖
Estava prestes a sair, quando senti o meu braço ser segurado com a força de uma pena.
― ... ‖
Nagato segurava minha manga com seus dedos finos. A pressão era muito suave, como a que alguém usaria para segurar um bebê hamster.
Ela tinha uma expressão branda no rosto. Nagato olhava para baixo enquanto tocava minha manga com seus dedos. Ela queria que eu ficasse? Ou será que se sentia sufocada estando sozinha com Asakura? Em todo caso, era o suficiente para me fazer mudar de idéia, especialmente ao vê-la tão desesperada assim.
―... estou só brincando! Eu vou comer! Nossa, estou faminto! Se não colocar nada no meu estomago agora é possível que eu não sobreviva no meu caminho para casa!‖
Seus dedos recuaram. Aparentemente, eu perdi toda a cena. A grande ironia da coisa é que normalmente não tenho como ver o que passa na cabeça de Nagato com tanta clareza.
Vendo-me flutuar de volta a sala, Asakura apertou os olhos, como se tivesse entendido tudo que estava acontecendo.
Eu havia me focado inteiramente em me entupir de oden. Minhas papilas gustativas gritavam de prazer, mas o meu coração falhava em reconhecer o que exatamente estava comendo. Nagato se concentrava em cada mordida, e demorou quase três minutos para comer e engolir um pedaço de alga Kombu [4]. Dentre nós três, a única que falava e comia sem preocupações era Asakura, enquanto eu só conseguia articular respostas desanimadas.
4-[Nota do tradutor: O Kombu, também chamado dashima ou haidai, são algas marinhas do gêneros Saccharina e Laminaria largamente consumido no noroeste da Ásia].
A refeição durou mais do que uma hora, meus ombros já doíam de tanta tensão, era como estar em uma pequena barraca nas portas do inferno.
Finalmente Asakura se levantou.
―Nagato-san, coloque o que sobrou em outro pote e deixe na geladeira. Mais tarde eu passo aqui buscar a panela.‖
Eu a segui para fora. Era como me libertar de todos os grilhões. Acenando para mim ambiguamente, Nagato baixou os olhos enquanto nos via saindo pela porta.
―Então, nos vemos depois. Posso visitar o clube amanhã? Não tenho mais nada para fazer depois da aula.‖
Nagato fixou seus olhos em mim, e...
... deu um suave, mas certeiro *sorriso*.
Literalmente, eu estava pasmo.
Durante a descida pelo elevador, Asakura riu para mim.
―Ei, você gosta da Nagato-san?‖
Bem, não é como se eu a odiasse. Se fosse escolher entre gostar e odiar, com certeza seria o primeiro, afinal não tenho nenhum motivo para deixar de gostar dela. Ela é a minha salvadora. Sim, Asakura, Nagato Yuki foi quem se salvou da sua lâmina assassina, então como eu a odiaria?
... não podia dizer nada disso para ela. Essa não é a antiga Asakura, e a mesma coisa vale para Nagato. Nesse mundo, apenas eu tenho outra perspectiva das coisas, e todos são pessoas normais. Nem mesmo a Brigada SOS existe aqui.
Como aquela bela garota interpretou a minha reticência? Ela apenas riu de maneira discreta.
―Não, não pode ser. Acho que eu estou imaginando coisas. Seu tipo de garota seria aquele mais estranho, e Nagato-san simplesmente não se encaixa no perfil.‖
―Como você sabe sobre o ‗meu tipo‘?‖
―Acho que ouvi algo que Kunikida-san disse. Vocês estiveram na mesma sala no fundamental, não?‖
Aquele bastardo, espalhando esse tipo de bobagem. Esse é só um tipo de engano do Kunikida, por favor, ignore.
―Mas fique atento! Se você pretende namorar com Nagato-san, é melhor ser uma pessoa séria. Caso contrario, nunca vou te perdoar! Pode não parecer, mas por dentro, Nagato-san é uma pessoa muito frágil.‖
Por que Asakura dedica tanta atenção a Nagato? No meu mundo original ela era o backup de Nagato – isso eu consigo entender. Mas bem, no fim ela acabou enlouquecendo e foi apagada da existência.
―É uma amizade fortalecida pela convivência no mesmo prédio. Acho que não consigo deixar ela sozinha. Olhando de longe, se sinto ela em perigo, algo em mim quer protegê-la, entende?‖
Talvez tenha entendido, talvez não.
A conversa acabou ai, e Asakura desceu no quinto andar. Apartamento 505, se não me engano.
―Vemos-nos amanhã.‖
O rosto sorridente de Asakura sumiu por detrás da porta fechada.
Sai do edifício rodeado por uma atmosfera fria e escura como a de uma geladeira industrial. O vento norte que soprava forte roubava algo a mais do que o mero calor do meu corpo.
Pensei em cumprimentar o velho porteiro, mas decidi não o fazê-lo. A guarita estava firmemente fechada e escura por dentro. Ele já deveria estar dormindo.
Só queria ir para a minha cama o quanto antes. Acho que só um sonho já estava bom para mim. Aposto que ela é o tipo de pessoa que é capaz de se meter no subconsciente dos outros com facilidade.
―Você me mete em problemas, estando presente ou não, só para sumir em um momento crítico como esse! Que tal ouvir os meus desejos pelo menos uma vez na vida...?‖
Sussurrei para o céu estrelado, reconhecendo surpreso no que estava pensando naquele momento. Tive vontade de me bater com força só por ter idéias sinistras assim.
―Mas que diabos...‖
O murmúrio da minha boca se tornou uma nevoa branca, se dispersando na noite escura.
Eu queria ver Haruhi.
Tradução: kwijibo Revisão: GardenAll - S.O.S. DanBrasil
Capítulo 2: [Download]
O dia 18 de dezembro acabou com uma desconfortável sensação de estar preso por todos os lados em um tubo de cola, e assim, o próximo dia veio.
19 de dezembro.
De hoje em diante, teríamos aulas mais curtas. Essa pausa deveria ter surgido muito antes, mas há pouco tempo atrás nossa humilde escola foi atropelada por uma escola rival nos resultados do exame nacional. Nosso diretor estava cuspindo fogo e instituiu mudanças forçadas no nosso sistema, com o propósito de aumentar o desempenho acadêmico. Parece-me que a história não muda, afinal.
Porém, não havia nada além de mudança ao meu redor, tanto na minha escola, quanto na Brigada SOS. Como se tivesse sido capturado em uma armadilha ardilosa, fui para aula apenas para descobrir que mais alunos da sala 1-5 não estavam ali. Taniguchi estava nessa lista, provavelmente de cama com uma febre de 40 graus.
E assim, no dia de hoje, Asakura continuava sentada atrás de mim, no lugar de Haruhi.
―Bom dia. Você está mais desperto hoje? Espero que seja este o caso.‖
―Veremos.‖
Coloquei a bolsa sobre a minha mesa com uma cara inflexível. Asakura apoiava seu queixo sobre as mãos.
―Mas estar apenas com os olhos abertos não garante que você não esteja sonhando. Ter um controle firme da situação à sua frente é o primeiro passo para entender. Como você está? Lidando bem com a situação?‖
―Asakura.‖
Inclinei-me para frente, lançando um olhar afiado para o rosto bem modelado de Asakura Ryouko.
―Diga-me de uma vez. Você simplesmente não se lembra ou está bancando a idiota? Sabe que você já tentou me matar antes?‖
O rosto de Asakura subitamente se tornou pesado, com o olhar exato de alguém que encara um paciente insano.
―... é, me parece que você ainda não acordou. Ouça o meu conselho: vá logo ver um médico antes que seja tarde demais!‖
Ela fechou seus lábios e, dali em diante, me ignorou completamente, enquanto conversava com uma garota próxima.
Virei-me para frente e, com meus braços cruzados, encarei intensamente o ar ao meu redor.
Vamos colocar as coisas em outra ótica.
Digamos que exista alguém extremamente infeliz. Essa pessoa tem sido espetacularmente infeliz, não importa se vemos isso objetivamente ou subjetivamente. A natureza dessa pessoa é, sem duvidas, a personificação de todo o azar e infelicidade, a ponto que até mesmo o velho príncipe Siddhartha [1], que se tornou um mestre iluminado teria de afastar os olhos dessa pessoa. Um dia, ele (essa pessoa pode também ser um ―ela‖, mas vamos assumir que seja ―ele‖, para encurtar a história e evitar problemas) acabou adormecendo, atormentado pela sua miséria usual, e no próximo dia, quando ele acorda, o mundo simplesmente virou de pernas para o ar. Este mundo se transformou em algo maravilhoso, tão incrível que até mesmo a palavra ―Utopia‖ não faria jus à ele. Nesse mundo, toda a sua infelicidade fora dizimada, e seu corpo e espírito, da cabeça aos pés estão repletos de alegria em todos os aspectos. E como mais nada de ruim cairia sobre os seus ombros, só poderíamos concluir que alguém levou essa pessoa do inferno ao paraíso em uma única noite.
1-[Nota do tradutor: Sidarta Gautama foi um professor espiritual da região nordeste da Ásia Meridional que fundou o Budismo].
É claro, a vontade dessa pessoa não é nem discutida aqui. Ele é levado por alguém que desconhece, por um motivo completamente obscuro. Não se sabe o que ele fez para que isso acontecesse, e talvez só Deus saiba.
Então, nesse caso, essa pessoa deveria ser feliz? Ao mudar o mundo, toda a infelicidade dele foi apagada. Porém, esse mundo continua sendo diferente do original, e o mistério por trás de todas essas mudanças permanece ali.
Assim, nesse cenário, usando nossos critérios conhecidos, para quem essa pessoa devia expressar a sua gratidão?
Dito isso, essa pessoa não sou eu. Posso afirmar que as coisas são bem diferentes.
Pensando bem... é uma analogia bem ruim para o meu caso, eu acho. Não era a pessoa mais infeliz do mundo até ontem, e tenha certeza que atualmente não sou o pináculo da felicidade entre todas as pessoas.
Enfim, ignorando o problema do exagero, a analogia se torna um pouco mais tolerável, quase exata, para ilustrar o meu argumento. Meus nervos estavam se despedaçando pelos constantes acontecimentos bizarros ao redor de Haruhi, e agora, tudo isso perdeu completamente a relevância para mim.
Mas há um porém—
Aqui, não existe nenhuma Haruhi nem Koizumi, a Nagato e a Asahina são pessoas comuns, e a própria existência as Brigada SOS tornou-se nada. Sem aliens, espers ou viajantes do tempo. Acima de tudo, sem gatos que falam. É, simplesmente, um mundo ordinário.
Mas e então?
Que mundo é o mais apropriado para mim? Que mundo mais me satisfaria? O mundo como era até pouco tempo? Ou o mundo de agora?
Será que eu estou feliz agora?
Depois da aula, meus pés seguiram no piloto automático para a sala de sempre do Clube de Literatura, uma típica ação reflexa – onde o corpo se move sem o cérebro perceber, fruto de uma repetição diária dessa mesma ação. É a mesma coisa quando se toma um banho. É claro que não existe uma seqüência predeterminada de como você vai se ensaboar, mas de tempos em tempos certo padrão acaba sendo repetido todas às vezes.
Todos os dias, assim que as aulas terminam, vou em direção a sala da Brigada SOS, beber o chá preparado por Asahina-san, e jogar alguma coisa com Koizumi, enquanto ouço a infinita baboseira delirante de Haruhi. Talvez por ser um mau hábito, que seja tão difícil o deixar de lado, mesmo que eu tenha consciência disso... exatamente por ser um mau hábito.
Porém, tenho de dizer que o ambiente de hoje é um tanto diferente.
―O que diabos eu devo fazer com isso?‖
Olhava intensamente para o papel em branco enquanto caminhava. Nagato me deu isso ontem, me encorajando timidamente a juntar ao Clube de Literatura. Mas eu simplesmente não consigo entender, por que eu? Será porque o clube não tem mais nenhum membro e está prestes a ser fechado? Mas é muita coragem da parte dela me recrutar, alguém que literalmente surgiu do nada e a atacou. Provavelmente, mesmo nesse mundo errado, a única pessoa que não muda a sua lógica peculiar é Nagato.
―Agh!‖
Enquanto andava pelo prédio dos clubes, passei por perto da dupla formada por Asahina e Tsuruya. Asahina-san literalmente recuou quando me viu passando, se agarrando fortemente a Tsuruya-san. Atordoado por aquela linda reação que ela teve ao me ver, dei um breve aceno e corri para longe. Por favor, deixe os meus dias comuns voltarem, assim posso aproveitar o meu néctar divino outra vez!
Dessa vez bati, só assim poderia abrir a porta. Esperei um pouco e ouvi uma resposta suave.
Nagato passou os olhos sobre o meu rosto e voltou ao livro que estava em suas mãos. Seu movimento ajeitando os óculos parecia ser uma saudação.
―Você não se importa de eu ter voltado para cá?‖
Seu pequeno rosto acenou firmemente. Apesar disso, seus olhos continuavam vidrados no livro à sua frente, não se dando nem ao trabalho de levantar a cabeça.
Coloquei a minha mala em um canto, e quase que imediatamente meus olhos saltaram procurando algo para fazer. Porém, nessa sala impessoal, não havia nenhuma engenhoca ou algo estranho com o que me ocupar. Minha única escolha repousava sobre a estante.
Todas as prateleiras estavam cheias de livros de todos os tamanhos. Muitos deles grossos e de capa dura, pelo menos muito mais do que os romances ou outros livros sem tanto cuidado, acho que isso tem muito a ver com a preferência pessoal de Nagato por leituras mais pesadas.
Silêncio.
Devia já estar acostumado a isso, mas hoje, esse silêncio estava imbuído de uma carga tão opressiva que chegava a ser doloroso. Se não fizesse nada a respeito, as coisas continuariam terrivelmente desconfortáveis
―Todos estes livros são seus?‖
A resposta veio quase que imediatamente.
―Alguns já estavam aqui antes de mim.‖
Nagato me mostrou a capa daquele grosso volume que estava lendo.
―Esse é emprestado. Da biblioteca publica.‖
Em sua lateral estava uma etiqueta em código de barra que mostrava a propriedade da biblioteca sobre o livro. A luz fluorescente se refletiu no adesivo laminado, fazendo os óculos da inexpressiva garota brilharem por um segundo.
E fim de conversa. Nagato voltou a sua desafiadora leitura silenciosa, enquanto eu lentamente perdia o meu lugar na existência.
Certamente esse silêncio era sufocante. Procurei algo para dizer, nem que fossem apenas palavras aleatórias.
―Você escreve também?‖
Depois disso, mais três quartos de momento em silêncio.
―Apenas leio.‖
Seus olhos se agitaram em direção ao computador por alguns segundo, antes de se esconder novamente sob as lentes, mas não rápido o suficiente para escapar aos meus olhos. É isso, certamente é isso que ela estava tentando esconder antes de me deixar usar o computador. Repentinamente, me surgiu uma vontade irresistível de ler a história de Nagato. O que ela teria escrito? Talvez ficção científica. Com certeza não seria uma história de amor, seria?
― ... ‖
Era difícil manter um diálogo com Nagato, em primeiro lugar. Apesar disso, essa Nagato não era muito diferente.
Reiniciei a minha operação silenciosa pela estante.
Por algum motivo, meus olhos pousaram sobre a lombada de um livro.
Era um titulo familiar. Na época da criação da Brigada SOS, Nagato havia me emprestado o primeiro volume de uma extensa serie de ficção cientifica, um livro com uma quantidade assustadora de palavras. Agora que estou me recordando dessa época, lembro-me de como Nagato, ainda uma garota de óculos, me empurrou esse livro sem espaço para nenhuma desculpa. ―Fique com isso‖, ela me arremessou essas palavras antes de sair rapidamente de cena. Tomou-me umas boas semanas para ler aquela coisa. Mas, para mim, já parecem anos que isto aconteceu. Muitas coisas ocorreram nesse meio tempo.
Estranhos e nostálgicos sentimentos cresceram dentro de mim, me impelindo a tirar o livro da estante. Não estava simplesmente dentro de uma livraria, folheando para ver se ia gostar, então não é como se fizesse algum esforço real para ler aquilo tudo. Virei as páginas a esmo e, quando estava para colocar o livro de volta no seu lugar, um pequeno pedaço de papel retangular caiu ao lado dos meus pés.
―Hmmmm?‖
Eu o apanhei prontamente. Era um marcador com um padrão floral. Parecia ser daqueles que as livrarias entregam de brinde nas compras – espere ai, um marcador?
Era como se o mundo estivesse girando em torno de mim. Ah... aquela vez... eu abri o livro no meu quarto... encontrei o mesmo marcador... e sai correndo com a minha bicicleta... aquelas palavras ficaram grudadas no fundo da minha mente.
Sete horas, estarei esperando no parque ao lado da estação.
Segurando meu fôlego, girei o marcador entre as minhas mãos – e então vi.
―Condição de execução do programa; coletar as chaves. Tempo limite: dois dias.‖
A sentença era como uma mensagem do passado, escrita em uma fonte precisa como a de um computador.
De uma só vez, me virei rapidamente para a mesa onde Nagato estava, alcançando-a em três passos. Fixando meu olhar naquelas pupilas negras, perguntei; ―Foi você que escreveu isso?‖.
Encarando fixamente o verso do marcador que eu segurava em sua frente, Nagato abanou sua cabeça confusa enquanto respondia; ―É parecida com a minha letra. Mas... não me lembro de ter escrito isso.‖
―... entendi. Como eu pensava. Está tudo bem, seria estranho se você soubesse. Tem algo me incomodando, mas não se preocupe com as baboseiras que eu estou falando, de verdade...‖
Enquanto essas desculpas esfarrapadas saiam da minha boca, sentia que a minha mente estava prestes a voar para longe.
Nagato.
Essa é uma mensagem sua, não é? É só uma frase de uma só linha, mas estou feliz por isso. Posso considerar isso um presente da Nagato que conheci por tanto tempo? Será que essa é uma pista para consertar toda essa situação maluca? Se não é, por que mais você escreveria esse bilhete tão parecido com um manual de instruções?
Condição, programa, chaves, tempo limite, dois dias.
... dois dias?
Hoje é dia 19. Será que devia contar dois dias a partir de agora? Ou eu devo contar a partir de ontem, quando o mundo enlouqueceu? Na pior das hipóteses, o tempo acaba amanhã, no dia 20.
A surpresa gradualmente esfriou como o magma lentamente endurecendo sobre a crosta da terra. Não sei de mais nada, mas acho que vou ter que juntar algumas chaves para executar esse programa. Mas o que diabos são essas chaves? Onde elas estão, e quantas são? Quando eu juntar todas elas, eu as trago de volta e troco por um brinde?
Pontos de interrogação infestaram a minha cabeça, finalmente se juntando em uma grande pergunta final.
Se eu executar esse programa, o mundo vai voltar ao normal?
Apressadamente tirei os livros da estante, procurando de cabo a rabo se haviam outros marcadores escondidos. Sob o olhar surpreso de Nagato eu continuei escavando, mas sem resultado. Não haviam outros...
―Só um, então?‖
Bem, colocando em termos, se alguém for ganancioso demais e juntar todos os itens que encontrar, isso só vai acabar o atrasando e o levando de volta ao ponto de partida. Mover-se aleatoriamente é apenas perda de tempo e de HP. Vamos colocar as coisas em prioridades, encontre as chaves. O topo ainda está longe, mas acredito que já conseguir enxergar pelo menos uma indicação da chegada.
Após pedir permissão, desempacotei meu almoço e me sentei diagonalmente a Nagato. Mastigando o meu lanche, também trouxe a tona dezenas de pensamentos. Nagato parecia dirigir seus olhos de vez em quando para a minha direção, mas eu apenas operava mecanicamente meus palitinhos, concentrado na tarefa mais urgente – continuar alimentando as minhas células cerebrais com nutrientes.
Enquanto o tempo passava, o meu almoço se esvaziava. Estava prestes a pedir um pouco de chá, quando percebi que Asahina-san não estava mais entre nós. Estava frustrado, mas continuei a ponderar. Essa era a hora da verdade. Não podia deixar uma pista tão preciosa escapar. Chave, chave, chave, chave...
Por umas duas horas consecutivas, estive imerso ema uma ardente reflexão.
Gradualmente, fiquei cansado da minha própria estupidez, e fui soterrado pelo desânimo.
―Não consigo entender!‖ – me amaldiçoei, em silêncio.
―Chaves‖ era um termo muito ambíguo para começar. Com certeza, não eram chaves de verdade para abrir e trancar, a hipótese mais válida era que fossem coisas como palavras chave ou pessoas chave. Mas o escopo ainda era muito amplo. Era algo, ou uma frase? Móvel ou imóvel? Queria poder perguntar mais pistas desse tipo. Tentei imaginar no que Nagato pensava enquanto escrevia esse marcador, mas a única coisa que conseguia pensar era nela lendo um livro difícil, ou dizendo algo impressionantemente longo – como a Nagato que sempre conheci.
Com um súbito interesse, virei-me para a diagonal e ali estava Nagato, imóvel como se estivesse tirando um cochilo. Talvez fosse só impressão minha, mas ela parecia estar na mesma página, sem progredir. Apesar disso, como contra-evidência de que ela não estava tirando uma soneca vespertina, suas bochechas enrubesceram quando percebeu que estava sendo observada pelo meu olhar perdido. Ou essa Nagato do Clube de Literatura é terrivelmente tímida, ou simplesmente desacostumada a ter a atenção alheia.
Mesmo sendo idêntica exteriormente, ela continuava reagindo de modo não familiar, o que certamente estimulou os meus interesses. Deliberadamente, fixei meus olhos nela, observando-a.
― ... ‖
Apesar de ter seus olhos focalizados nas páginas, estava claro que ela não conseguia ler uma única palavra escrita naquelas linhas. Nagato inspirava silenciosamente com seus lábios semicerrados, e o ritmo discreto do seu peito expirando pesarosamente logo se tornou visível. O pálido tom rosado de suas bochechas se tornava mais rubro a cada minuto. Para dizer a verdade, Nagato era um pouco – não, melhor dizendo, muito bonitinha. Pensei por um instante que não seria má idéia me juntar ao Clube de Literatura e aproveitar um mundo sem Haruhi.
Mas não, não posso jogar a toalha ainda. Tirei o marcador do meu bolso e o segurei com força, cuidando para não o esmagar. Deixar esse aviso aqui significa que Nagato ainda tem negócios a tratar comigo. Eu mesmo tenho coisas para fazer no meu antigo mundo! Não provei a comida de Haruhi, ainda não consegui fixar a imagem de Asahina-san vestida de Mamãe Noel nas minhas retinas. E o meu jogo com Koizumi foi interrompido enquanto eu estava em vantagem. Se continuasse assim, eu teria vencido, então não têm como eu desistir dos meus justos cem ienes dessa maneira.
O sol poente reluziu pela janela, e a hora dela se esconder atrás dos prédios do campus como uma grande bola alaranjada havia chego.
Cansei de esperar sentado, pois nada de bom aparecia em minha cabeça, não importa o quanto eu tentasse. Levantei-me alcançando a minha bolsa.
―Acho que é tudo por hoje.‖
―Tudo bem.‖
Nagato fechou o livro que podia – ou não – estar lendo esse tempo todo, e o colocou dentro da mala antes de se levantar. Será que ela estava esperando que eu dissesse isso?
Peguei minha mala. E, mesmo assim, ela não se movera um centímetro, acho que Nagato ficaria ali para sempre se eu não desse o primeiro passo.
―Ei, Nagato?‖
―O quê?‖
―Você mora sozinha, não?‖
―... sim.‖
Ela provavelmente está pensando em como diabos eu sei de uma coisa assim.
Ia perguntar se ela vivia com a sua família, mas parei prontamente quando vi os seus olhos pesarem subitamente. Memórias daquele seu quarto, praticamente sem mobília alguma, vieram na minha mente. Minha primeira visita havia sido há sete meses atrás, com toda aquela conversa cósmica e telepática que era quase assustadora na sua falta de limites. A segunda visita foi no Tanabata de três anos atrás, onde eu estava com Asahina-san. Pensando bem, a segunda vez foi antes da primeira, se observarmos o fluxo normal do tempo, o que de certo modo é um tipo de conquista para mim.
―Que tal ter um gato? Gatos são ótimos! Eles podem parecer preguiçosos o tempo todo, mas tem vezes que penso que eles conseguem entender o que eu estou dizendo. Não me surpreenderia se gatos pudessem falar. E acredite, não estou brincando quando digo isso.‖
―Animais são proibidos.‖
Depois da resposta, ela se calou por algum tempo, com seus olhos flutuando em tristeza. Como o som do vento em uma fissura nas rochas, ela respirou fundo e falou em uma voz insegura.
―Você quer ir?‖
Nagato olhava para as minhas mãos.
―Onde?‖
E os meus dedos responderam de volta.
―Minha casa.‖
Mais meia nota de silêncio.
―... posso?‖
O que estava acontecendo aqui? Ela é tímida, envergonhada ou agressiva? Essa Nagato tem uma curva psicologia completamente descontinua! Ou será que a mentalidade de
uma estudante normal dos dias de hoje é tão irregular quando a curva de luz da estrela de Mira[2]?
2-[Nota do tradutor: curva de luz é um gráfico onde são plotadas as variações de brilho da estrela no decorrer do tempo. A estrela em questão é Mira, a "Maravilhosa", na constelação da Baleia].
―Claro.‖
Nagato saiu da sala, escapando da minha vista. Ela apagou as luzes, abriu a porta e desapareceu no corredor escuro.
É claro que eu a segui. A casa de Nagato, número 708 em um prédio de luxo. Acho que só vou dar uma espiada na sala de estar. Talvez consiga encontrar algumas pistas por lá.
E se eu encontrar um outro eu dormindo lá, pode ter certeza que vou o acordar usando meus punhos!
Na saída da escola, Nagato permaneceu silenciosa como sempre.
Ela apenas caminhava em linha reta pela ladeira, em silêncio. Com passos inseguros que davam a impressão de que um vento forte e gelado estava rugindo contra ela. Seu cabelo estava bagunçado, agitado pelas súbitas rajadas de vento. Olhando para suas costas, continuei a caminhar mecanicamente. Haviam varias coisas que eu gostaria de falar, mas sentia que era melhor não perguntar porque ela havia me convidado.
Depois de caminhar por algum tempo, Nagato parou na frente do seu prédio. Quantas vezes eu havia vindo até aqui? Duas para ver Nagato, uma para descobrir algo sobre Asakura, e uma vez no terraço? Digitando a senha habilmente na porta de entrada, Nagato abriu o portão e entrou no lobby sem olhar para trás uma só vez.
Ela estava quieta mesmo no elevador. Quando chegamos na porta do oitavo apartamento do sétimo andar, ela inseriu a chave na porta e a abriu devagar, mesmo assim, ela me convidou para entrar fazendo apenas um gesto.
Passei pela porta sem deixar escapar um só som. O arranjo da sala não era muito diferente da minha memória. Era apenas uma sala sem nada de notável. Não havia nenhum móvel na sala de estar a não ser um kotatsu. Como era de se esperar, nem mesmo havia cortinas nas janelas.
E havia o quarto de visitas. Na verdade era apenas um cômodo separado por uma porta de correr.
―Posso dar uma espiada nessa sala?‖
Perguntei para Nagato, que havia isso a cozinha pegar um jogo de chá. Ela piscou suavemente.
―Vá em frente.‖
―Desculpe pela invasão.‖
A porta se abriu, deslizando como se não houvesse nada preso a ela.
― ... ‖
Só haviam alguns tatamis lá dentro.
Bem, eu devia ter adivinhado, não tem como eu ter viajado para o passado tantas vezes.
Coloquei a porta novamente na sua posição original, e mostrei as minhas mãos para Nagato, que observava tudo de longe. Porém, aposto que esse gesto não deve ter significado nada para era. Apesar disso, sem dizer nada, Nagato colocou os dois copos sobre o kotatsu, se sentou com as pernas sob o corpo e começou a despejar chá sobre eles.
Sentei-me em sua frente com as pernas cruzadas, da mesma maneira que havia feito quando a visitei pela primeira vez. Naquela época, eu havia bebido centenas de copos de chá feitos por Nagato, completamente alheio a tudo, enquanto ouvia um monólogo sobre a natureza do universo e todas as coisas. Foi um período de novidades e de um calor brutal, completamente diferente do frio atual. Acho que até mesmo o meu coração está mais fresco agora.
Tomando seu chá em minha frente e em completo silêncio, os olhos de Nagato lentamente desceram para baixo de seus óculos.
Por algum motivo, ela estava hesitando. A sua boca abria e depois de fechava. Ela olhava para mim tentando juntar um pouco de coragem, só para momentos depois forçar sua visão novamente para baixo. Ela repetiu isso algumas vezes, até que conseguiu colocar seu copo de chá de lado, e falar com grande esforço.
―Eu já havia me encontrado com você.‖
E adicionando depois.
―Fora da escola.‖
Onde?
―Você se lembra?‖
Onde?
―Biblioteca.‖
Após ouvir essa palavra, as engrenagens da minha mente voltaram a se mover. E todas as memórias com Nagato voltaram a minha mente. Era a biblioteca que visitamos na primeira busca á mistérios da Brigada SOS.
―Em maio,‖
Seus olhos hesitaram novamente,
―você me ajudou a fazer um cartão da biblioteca.‖
Minha psique havia sido atingida em cheio por um relâmpago, se recusando a funcionar.
... sim. Se não fosse por isso, você ainda estaria ali, em frente às prateleiras! A chamada de Haruhi tomava a forma de pequenas e irritantes ligações, e não acho que haveria outra forma de nos tirar de lá rapidamente.
―Você...‖
De todo modo, Nagato continuou a explicar, e acabei descobrindo que a sua descrição dos fatos não batia muito com a minha. A explicação da garota, usando sua voz fraca e murmurante, foi algo assim;
Mais ou menos na metade de maio, Nagato visitou a biblioteca da cidade pela primeira vez, e ela não tinha idéia de como fazer um cartão. Seria fácil se ela tivesse perguntado para alguém, mas os poucos bibliotecários presentes estavam ocupados. Para piorar, uma pessoa introvertida como Nagato era bastante ruim com as palavras, não conseguindo juntar coragem para perguntar para ninguém; assim, a garota começou a vagar em vão pela biblioteca. Provavelmente cansado de ver algo assim acontecendo, um garoto do ensino médio que estava passando por lá se voluntariou para ajudá-la, realizando os procedimentos em seu lugar.
―Era você.‖
Ela se virou para mim, e nossos olhos se encontraram por menos de um segundo, antes que ela voltasse a encarar o kotatsu seriamente.
― ... ‖
Acho que as reticências foram divididas entre eu e Nagato. E logo o silêncio se mesclou novamente ao vazio da sala, e nem mesmo eu conseguia pensar em nada para dizer. Acho que é porque eu não posso responder sobre algo que não me lembro. Nossas memórias eram levemente diferentes. É verdade que fiz o cartão para ela, mas estava de passagem; no lugar disso, fui eu mesmo que a levei até a biblioteca. Acabei desistindo da dita ―patrulha do mistério‖ que estava certamente fadada ao fracasso, para matar meu tempo na biblioteca. Mesmo que a minha memória seja como a de um bebê anêmona marinha, não tem como esquecer da imagem da quieta Nagato de uniforme.
― ... ‖
Sem saber como lidar com o meu silêncio, Nagato apertou os lábios com uma ponta de tristeza, fazendo círculos ao redor do copo com os seus pequenos dedos. Ao ver aquele leve tremor visível em suas mãos, fiquei ainda mais inseguro com a conversa, engrossando ainda mais o pesado silêncio do ambiente.
Seria mais simples dizer para eu que eu me lembrava, o que de todo modo não seria uma mentira deslavada. Talvez tivéssemos algumas falhas na verdade. E, nesse caso, as falhas que seriam as maiores questões com que eu tenho de lidar.
Por que existe essa diferença?
A alienígena que eu conheci desapareceu para algum lugar, deixando apenas um marcador de páginas.
Ding-dong!
A campainha quebrou a eterna inquietude da sala. Quase pulei com as pernas cruzadas ao ouvir aquele barulho súbito. Até mesmo a própria Nagato estava em choque com a surpresa, se dirigindo rapidamente até a entrada.
Novamente a campainha tocou, trazendo consigo um visitante. Mas, afinal, quem iria visitar a casa de Nagato? Não consigo pensar em ninguém a não ser um entregador ou um coletor de impostos.
― ... ‖
Como uma alma se descolando do corpo, Nagato se levantou e deslizou para perto da parede, sem fazer nenhum barulho. Ela colocou as chaves no painel eletrônico e ouviu a voz de alguém saindo por ele em um chiado abafado. Para então se virar para mim com uma expressão frustrada.
Ela falava baixinho pelo fone, quase murmurando, soltando negativas inseguras como ―Mas...‖ e ―Bem...‖.
―Espere.‖
Aparentemente, Nagato fora derrotada. Ela caminhou até a entrada e destrancou a porta.
―Olha quem está aqui!?‖
A garota forçou a sua entrada com os ombros na porta.
―Por que você está aqui? Isso é uma novidade – Nagato-san trazendo um rapaz para casa.‖
A menina com um uniforme de nossa escola trazendo uma panela com ambas as mãos, habilmente tirando os sapatos ao passar pela soleira da porta.
―Não me diga que você invadiu!‖
Para começar, diga você qual o motivo da visita. Já é surpreendente o bastante ver a sua cara fora da sala de aula!
―Você pode me ver como uma voluntária. E realmente é inacreditável pensar que você estaria aqui.‖
Era a representante de classe que sentava atrás de mim.
Em outras palavras, Asakura Ryouko acabara de entrar.
―Acho que eu fiz um pouco demais. Está tão quente e pesado!‖
Sorrindo, Asakura colocou a grande panela sobre o kotatsu. Se alguém passasse pela loja de conveniência essa época do ano acabaria presenciando esse mesmo cheiro. Será que tem oden [3] ai dentro? Foi Asakura que fez?
3-[Nota do tradutor: Oden é de um prato japonês, consumido mais comumente no inverno, que consiste de vários legumes (como daikon e kon'nyaku), tofu e ovos cozidos imersos em um caldo feito à base de molho de soja e peixe].
―Exatamente. Prefiro dividir coisas assim, afinal não demora muito para fazer em grandes quantidades. Se deixasse Nagato-san sozinha aqui, sem cuidados, ela iria acabar desnutrida.‖
Nagato foi até a cozinha pegar pratos e talheres. O barulho do vidro se chocando suavemente podia ser ouvido ao longe.
―Então? Não vai me dizer o motivo de estar aqui? Estou interessada, sabia?‖
Fiquei sem palavras. Estou aqui porque fui convidado, mas não me pergunte o motivo do convite. Será que foi a história da biblioteca? Poderíamos muito bem falar disso na sala do clube. Pessoalmente, eu só a segui obedientemente porque achei que poderia achar alguma pista do que são essas ―chaves‖ aqui; apesar disso, não posso falar a verdade em voz alta. Só me meteria em mais problemas fazendo-a pensar que tenho algum tipo de problema mental.
Inventei logo uma mentira.
―Bem... é claro. Estava voltando para casa pelo mesmo caminho que ela... sim, fiquei meio confuso com o convite de Nagato para me juntar ao Clube de Literatura, então estávamos conversando durante a saída, mas acabamos chegando ao apartamento dela sem que a discussão chegasse a uma conclusão. Assim, ela me convidou para entrar para que pudéssemos terminar. Não invadi, juro.‖
―Você, no Clube de Literatura? Perdoe-me, mas não acho que isso combina muito com você. Afinal você realmente lê algum livro? Ou por acaso quer ser escritor?‖
―Meu problema é mais voltado ao que eu vou ler ou escrever de agora em diante. Isso é tudo.‖
Ela levantou a tampa da panela, e um aroma sedutor encheu a sala a partir do kotatsu. Os ovos cozidos que flutuavam no caldo estavam com uma cor ótima.
Asakura-san sentou em um dos cantos da mesa com as pernas cruzadas, olhando de maneira suspeita para mim ocasionalmente. Podia ser apenas impressão minha, mas aqueles olhares eram tão afiados que se tivessem massa, eu estaria agora cheio de buracos. Aquela Asakura virou uma assassina sanguinária repentinamente, mas essa Asakura se mantinha impassível, com uma grande confiança enraizada em sua postura nobre. Tinha certeza que aquele oden estava mais delicioso do que qualquer outro. Mas aquela aura colocava tanta pressão em mim que sentia a minha confiança se esvair em diversos aspectos. Estava andando em círculos, nada mais.
Incapaz de agüentar aquilo por mais um segundo, peguei a minha mala e me levantei.
―Oh, você não vai comer com a gente?‖
Confrontando o tom jocoso de Asakura com silêncio, decidi me retirar da sala com passos leves.
―Oh.‖
Quase me choquei com Nagato que voltava da cozinha. Nas mãos dela havia uma pilha de pequenos pratos com hashis, e um tubo de raiz forte descansando sobre ele.
―Estou indo. Desculpe pelo incômodo. Vejo você mais tarde.‖
Estava prestes a sair, quando senti o meu braço ser segurado com a força de uma pena.
― ... ‖
Nagato segurava minha manga com seus dedos finos. A pressão era muito suave, como a que alguém usaria para segurar um bebê hamster.
Ela tinha uma expressão branda no rosto. Nagato olhava para baixo enquanto tocava minha manga com seus dedos. Ela queria que eu ficasse? Ou será que se sentia sufocada estando sozinha com Asakura? Em todo caso, era o suficiente para me fazer mudar de idéia, especialmente ao vê-la tão desesperada assim.
―... estou só brincando! Eu vou comer! Nossa, estou faminto! Se não colocar nada no meu estomago agora é possível que eu não sobreviva no meu caminho para casa!‖
Seus dedos recuaram. Aparentemente, eu perdi toda a cena. A grande ironia da coisa é que normalmente não tenho como ver o que passa na cabeça de Nagato com tanta clareza.
Vendo-me flutuar de volta a sala, Asakura apertou os olhos, como se tivesse entendido tudo que estava acontecendo.
Eu havia me focado inteiramente em me entupir de oden. Minhas papilas gustativas gritavam de prazer, mas o meu coração falhava em reconhecer o que exatamente estava comendo. Nagato se concentrava em cada mordida, e demorou quase três minutos para comer e engolir um pedaço de alga Kombu [4]. Dentre nós três, a única que falava e comia sem preocupações era Asakura, enquanto eu só conseguia articular respostas desanimadas.
4-[Nota do tradutor: O Kombu, também chamado dashima ou haidai, são algas marinhas do gêneros Saccharina e Laminaria largamente consumido no noroeste da Ásia].
A refeição durou mais do que uma hora, meus ombros já doíam de tanta tensão, era como estar em uma pequena barraca nas portas do inferno.
Finalmente Asakura se levantou.
―Nagato-san, coloque o que sobrou em outro pote e deixe na geladeira. Mais tarde eu passo aqui buscar a panela.‖
Eu a segui para fora. Era como me libertar de todos os grilhões. Acenando para mim ambiguamente, Nagato baixou os olhos enquanto nos via saindo pela porta.
―Então, nos vemos depois. Posso visitar o clube amanhã? Não tenho mais nada para fazer depois da aula.‖
Nagato fixou seus olhos em mim, e...
... deu um suave, mas certeiro *sorriso*.
Literalmente, eu estava pasmo.
Durante a descida pelo elevador, Asakura riu para mim.
―Ei, você gosta da Nagato-san?‖
Bem, não é como se eu a odiasse. Se fosse escolher entre gostar e odiar, com certeza seria o primeiro, afinal não tenho nenhum motivo para deixar de gostar dela. Ela é a minha salvadora. Sim, Asakura, Nagato Yuki foi quem se salvou da sua lâmina assassina, então como eu a odiaria?
... não podia dizer nada disso para ela. Essa não é a antiga Asakura, e a mesma coisa vale para Nagato. Nesse mundo, apenas eu tenho outra perspectiva das coisas, e todos são pessoas normais. Nem mesmo a Brigada SOS existe aqui.
Como aquela bela garota interpretou a minha reticência? Ela apenas riu de maneira discreta.
―Não, não pode ser. Acho que eu estou imaginando coisas. Seu tipo de garota seria aquele mais estranho, e Nagato-san simplesmente não se encaixa no perfil.‖
―Como você sabe sobre o ‗meu tipo‘?‖
―Acho que ouvi algo que Kunikida-san disse. Vocês estiveram na mesma sala no fundamental, não?‖
Aquele bastardo, espalhando esse tipo de bobagem. Esse é só um tipo de engano do Kunikida, por favor, ignore.
―Mas fique atento! Se você pretende namorar com Nagato-san, é melhor ser uma pessoa séria. Caso contrario, nunca vou te perdoar! Pode não parecer, mas por dentro, Nagato-san é uma pessoa muito frágil.‖
Por que Asakura dedica tanta atenção a Nagato? No meu mundo original ela era o backup de Nagato – isso eu consigo entender. Mas bem, no fim ela acabou enlouquecendo e foi apagada da existência.
―É uma amizade fortalecida pela convivência no mesmo prédio. Acho que não consigo deixar ela sozinha. Olhando de longe, se sinto ela em perigo, algo em mim quer protegê-la, entende?‖
Talvez tenha entendido, talvez não.
A conversa acabou ai, e Asakura desceu no quinto andar. Apartamento 505, se não me engano.
―Vemos-nos amanhã.‖
O rosto sorridente de Asakura sumiu por detrás da porta fechada.
Sai do edifício rodeado por uma atmosfera fria e escura como a de uma geladeira industrial. O vento norte que soprava forte roubava algo a mais do que o mero calor do meu corpo.
Pensei em cumprimentar o velho porteiro, mas decidi não o fazê-lo. A guarita estava firmemente fechada e escura por dentro. Ele já deveria estar dormindo.
Só queria ir para a minha cama o quanto antes. Acho que só um sonho já estava bom para mim. Aposto que ela é o tipo de pessoa que é capaz de se meter no subconsciente dos outros com facilidade.
―Você me mete em problemas, estando presente ou não, só para sumir em um momento crítico como esse! Que tal ouvir os meus desejos pelo menos uma vez na vida...?‖
Sussurrei para o céu estrelado, reconhecendo surpreso no que estava pensando naquele momento. Tive vontade de me bater com força só por ter idéias sinistras assim.
―Mas que diabos...‖
O murmúrio da minha boca se tornou uma nevoa branca, se dispersando na noite escura.
Eu queria ver Haruhi.
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