Capítulo 10 – Fênix, Além do Mar, Sacola de Remédios [Download - Mirror]
Eu estava praticando o meu baixo tarde da noite, depois de jantar sozinho. Só então, o som de um desabamento veio da direção da porta da frente.
— Oooh! É a maior felicidade possível, morrer enquanto sou enterrado no meio de toda essa música grandiosa de eras diferentes.
Na porta estava Tetsutou no seu terno raro, enterrado no meio de um monte de CDs derrubados. Ele estava murmurando para si mesmo, enquanto encarava o teto deslumbrado.
— Por favor, economize o suficiente para que eu possa viver uma vida boa antes de você morrer.
Falando nisso, me lembro de ter arrumado um pouco, não? Não importa o quanto eu tente arrumá-los, os CDs ainda começam a se amontoar cada vez mais altos, não há fim para isso. Eu reclamei enquanto cavava o Tetsurou para fora da bagunça.
— Após a minha morte você terá que colocar a <Fênix>1 de Stravinsky no meu caixão. Nem pense em tocar <Réquiem em Ré menor>2 ou algo assim, só toque <Paixão Segundo São Mateus>3! Eu irei então superar o recorde de Jesus Cristo e me ressuscitarei em dois dias!
— Não precisa fazer nada disso, simplesmente vá para o inferno e fique lá! Eu não disse para me ligar se fosse beber?
— Ah, hmm. Fazia um bom tempo desde que me encontrei com meus antigos colegas da Faculdade de Música pela última vez... Urgg...
As grandiosas músicas de eras diferentes, assim como o único terno social do Tetsurou, se sujaram com os fluidos de cheiro azedo dele. Esse aí já estava semimorto pela sua embriaguez.
— Ahh! Eu terei que mandar isso para lavagem.
1 http://www.youtube.com/watch?v=5tGA6bpscj8
2 http://www.youtube.com/watch?v=Zi8vJ_lMxQI
3 http://www.youtube.com/watch?v=Dl9lL_ou8c4
Depois de vomitar no banheiro, Tetsurou voltou com um rosto pálido. Mesmo depois de ver quão sujo ele deixou seu terno, conseguiu falar como se fosse algo que não tivesse nada a ver com ele. Só existe uma coisa que consegue fazer Tetsurou se vestir bem, e é um concerto. Devido a natureza do seu trabalho existem várias ocasiões em que é necessário que ele presencie um, e ainda assim ele só tem um terno. O que eu deveria fazer com ele? De qualquer forma, vou arrumar um copo de suco de limão quente para ele melhorar sua embriaguez.
— Uuuh, agora estou revigorado. Sou um cara de sorte. Minha esposa fugiu, mas Deus me presentou com um filho que sabe tomar conta de mim.
Oh mãe, por que você não lutou mais pela minha custódia?
— Eu já tive o suficiente de mulheres. Todos os meus cinco colegas são solteiros, e três deles já se divorciaram uma vez!
Tetsurou estava inventando suas próprias letras e cantando junto com a ária de Rigoletto, <A Mulher é Móvel>4. Cobri sua cabeça com o saco de lixo para calá-lo. Pense sobre os nossos vizinhos e pare de incomodá-los!
— É o mesmo para você com as garotas, né? Você já jogou fora a guitarra ou qualquer coisa que tenha sido, certo?
— Eu ainda estou tocando! Pare de me tratar como um idiota! — Apontei para o baixo no sofá
— Mas você é horrível tocando, não?
— Bem, me desculpe por isso! — Isso quer dizer que o som ainda pode ser ouvido lá de fora? Acho que é melhor eu não conectar meu baixo no amplificado no futuro, quando eu for praticar em casa.
— Ooh, por quê? Aquela garota é tão boa? Ah, é Ebisawa Mafuyu, certo? Você falou dela antes. Ela é uma boa garota, sim, sim. Sabe, existe um ditado besta no nosso ramo... Veja, no caso da capa dos álbuns de musicistas mulheres, a foto é tirada do seu perfil, e isso é feito especialmente no caso de pianistas. Se ela for um pouco mais bonita a foto é tirada da diagonal de seu rosto, caso ela seja belíssima a foto é tirada da frente do rosto. Estou nesse
4 http://www.youtube.com/watch?v=xCFEk6Y8TmM
trabalho há quinze anos e Mafuyu é a primeiro que eu vi ter a foto tirada de baixo para cima. Ei? O que está errado, pequeno Nao? Eu acertei a ferida?
— Cala a boca.
Peguei um copo d’água e joguei seu conteúdo no rosto do Tetsurou
— Que infernos você está fazendo... Pequeno Nao está realmente frio esses dias. Será que você me odeia?
— Olha, Tetsurou...
— Hmm?
— Você odeia o imposto de renda?
— Ahn? Por que a pergunta de repente?
— Só responda.
— Hmm, se você me perguntar se eu odeio ou não... Acho que seria melhor não existir, então talvez eu odeie isso. No entanto, já que eu venho pagando o imposto de renda há tanto tempo, acho que já me esqueci desse tipo de sentimento detestável.
— Hmm... É mais ou menos isso que eu sinto em relação a você.
— ...Eu posso chorar?
— Vá para fora se quer chorar.
Tetsurou colocou uma garra de uísque embaixo do braço e pareceu que ele realmente planejava sair. Pensando em como ele ia ser um incômodo para os vizinhos, eu o parei imediatamente. Aja como uma pessoa normal da sua idade e vá dormir!
— Mas... Não acho que exista uma chance entre você e Ebisawa Mafuyu. Porque... Bem, você sabe que é filho de um crítico musical e ela também sabe disso. Falando nisso, acabei de voltar de um concerto do Ebichiri no Japão. Eu havia o chamado para vir beber conosco, mas ele me disse que teria que aparecer num programa de TV ao vivo, então tinha que rejeitar o convite. Mas nos falamos durante o banquete e parece que ele estará no Japão esse mês, mas provavelmente voltará a viajar para lugares distantes em Junho. É provável que volte à América.
— Então, como eu dizia, você está entendo isso errado... Ahn?
Ebichiri, o pai da Mafuyu, voltou ao Japão?
Ele voltará a América em Junho. O Junho a que Mafuyu se refere... É esse?
— ...Então, e sobre a Mafuyu? Você ouviu algo relacionado a ela?
— Ahn?
— Nada. Então... Ela irá voltar para lá também?
Mais ou menos nessa época do ano passado Mafuyu talvez estivesse com seu pai, viajando para vários lugares na Europa e América por causa da turnê mundial? Mas, ela não faria algo tão sem propósito como se transferir para um colégio por um único mês, certo?
— Ela provavelmente não voltará ao piano, eu acho. Ouvi ainda hoje também, parece que os críticos no exterior escreveram algumas coisas bem desagradáveis sobre ela. Ela até participou em uma competição que não tinha nenhum vínculo com o Ebichiri e conseguiu ganhar. Mas ainda assim, ela ainda está presa à fama do seu pai.
— Ah...
Me lembrei daquele incidente onde Mafuyu estava me encarando cheia de hostilidade. “A própria existência de críticos é problemática. Eles sempre escrevem besteira”. Ela realmente disse algo assim antes.
— Mas bem, o estilo dela é convidativo a ataques. Como ela não estava animada o suficiente; como foi calmo demais; como sua apresentação das partes foi horrível; como sua música foi como insetos rastejando; ou como ela estava superconfiante na sua técnica... Até eu consigo pensar várias críticas desse tipo na hora, e se eu realmente quiser, eu provavelmente consigo escrever umas trinta páginas sobre isso. Mas seria bastante estúpido de minha parte fazer isso, não é como se todas as peças que você tocar serão consideradas boas só porque foram tocadas de forma vibrante, com energia.
— Então essa é a razão pela qual Mafuyu não toca o piano?
— Eu não acho que seja. Bem, também parece que eles escreveram coisas sobre sua vida privada mesmo que não sejam relacionadas à música, só por ser filha do Ebichiri. Veja bem, sua mãe é húngara e eles são divorciados.
— Ah... Então ela realmente é mestiça.
De repente eu me lembrei do dia que concertei seu tocador. Hungria.
— Ah, quer dizer que você não sabe sobre isso? Bem, nós deveríamos parar de falar sobre essas coisas. Sinto como se fosse um paparazzo que está rondando por notícias.
Tetsurou abriu a garrafa de uísque e bebeu diretamente dela. Eu já não tinha mais forças para pará-lo.
Quando eu era apenas um estudante do fundamental, pensando em viver minha vida tranquilamente aqui no Japão, Mafuyu já estava do outro lado do oceano embaixo do escrutínio de olhos curiosos e hostis ao seu redor e vivendo uma vida temível enquanto se segurava firmemente ao piano. Que tipo de vida é essa? Não consigo nem imaginar.
De qualquer forma, tudo volta ao problema inicial, de novo. Se ela realmente desistiu do piano, então por que ela toca guitarra?
No próximo dia, enquanto eu estava andando para a minha sala meus colegas estavam discutindo sobre o programa que passou ontem na TV.
— O show foi ao vivo?
— Sim, parece que ele já está de volta ao Japão.
— Uma entrevista?
— Eles estavam falando sobre coisas que eu não entendia. Não é como se eu ouvisse música clássica.
— Eles são parecidos?
— Nem um pouco. A Princesa provavelmente se parece com a mãe.
Só com pedaços da conversa eu imediatamente sabia sobre do que eles falavam, Ebichiri. Olhei de relance para o assento vazio da Mafuyu.
— O apresentador perguntou sobre a Princesa também.
— O pai e a filha não estão se dando bem, certo?
Estive pensando esse tempo todo, vocês sabem que Mafuyu chegará aqui logo mais e ainda assim continuam a fofocar sobre ela?
— Nao, seu pai foi colega de sala do Ebichiri, certo?
— ...Como você sabia?
— Maki disse! Ela também disse que quando Ebichiri ainda estava ensinando, seu pai estava sempre flertando com garotas.
Senhorita Maki... Por favor, não exagere essas histórias e saia espalhando-as por aí.
— O quê? Então Nao realmente conhecia a Princesa antes.
— Mas pelo que eu vi, Ebichiri insistia em mudar o assunto sempre que o apresentador perguntava algo sobre sua filha. Você sabe a razão?
— Hmm, olha só...
Tirei o baixo dos ombros e o apoiei na minha mesa. Então juntei toda a minha determinação e disse:
— Parem de perguntar coisas relacionadas a ela, tudo bem?
Todos estavam me olhando com expressões de surpresas. Eu fingi organizar meus livros e continuei:
— Só deixem-na em paz, ok? Ela é como uma gatinha selvagem e machucada, se vocês se aproximarem dela, ela pode acabar arranhando vocês, mas se a deixarem em paz, ela não irá incomodar ninguém. Aquela garota teve seus problemas durante a turnê mundial na América e tal, então...
Enquanto eu dizia tudo isso, percebi que as pessoas ao meu redor mudaram seu olhar para uma direção estranha. Tive a sensação de uma picada na minha omoplata. Me virei e vi Mafuyu em pé na porta da sala. Talvez ela tenha herdado isso da sua mãe húngara? Havia um leve rubor aparecendo em sua pele pálida. Seus grandes olhos estavam me encarando, não parecia que eram olhos de raiva, mas ao invés disso, ela estava chocada.
— ...Ah, olha, eu não...
Eu não tinha certeza na hora se eu estava tentando me desculpar.
— Você certamente sabe como espalhar essas coisas.
Ela murmurou e caminhou para o seu assento. Todos ao meu redor já haviam fugido para todos os lados.
— Não é o que você pensa.
— Por favor, não fale comigo.
A voz da Mafuyu era como uma tesoura, cortando a distância entre nós. Só pude permanecer quieto. Os que estavam ao meu redor há pouco tempo estavam agora me lançando olhares de apreensão.
Chiaki correu para dentro da sala só depois do sinal já ter tocado. Quando ela passou por mim e Mafuyu, também percebeu a atmosfera perigosa.
— O que houve? — Ela olhou rapidamente para mim e então para Mafuyu – Vocês estão brigando de novo?
— Eu nunca tive uma briga com ele antes, então por favor não use o termo “de novo”.
Mafuyu disse enquanto virava o rosto.
Chiaki estava prestes a dizer algo, mas puxei sua manga e implorei para que não dissesse nada.
Pode se esquecer de falar, Mafuyu nem olhou na minha direção uma vez. Ela imediatamente saiu correndo da sala assim que o intervalo começou.
— Ela está brava...
— A Princesa está brava...
Todos os sussurros, assim como os olhares, dos meus colegas haviam convergido em mim. Dessa vez realmente era minha culpa, sem escolha, me levantei e saí da sala.
Andei para o pátio e cheguei à sala de treino do antigo prédio de música. Não havia cadeado na porta, e ela também estava entreaberta. Eu quietamente espiei dentro da sala e não vi ninguém. O que estava acontecendo aqui?
Entrei na sala e vi a guitarra conectada no amplificador, com a palheta abandonada encima da mesa. Parecia que alguém havia corrido para fora da sala às pressas após entrar. O que significa que não deve ter problema eu esperar por ela aqui, certo? Então me lembrei de que não pensei em como eu iria me desculpar com ela. Qual a razão pela qual a Mafuyu estar brava comigo?
Assim que me sentei na almofada da mesa, pensando em como eu deveria me desculpar, sem querer derrubei no chão a palheta com um movimento das minhas mãos. Essa é provavelmente a palheta que ela usa. Mas foi só quando a peguei que percebi, a forma da palheta é bastante estranha.
Tipicamente falando, palhetas são pedaços de plásticos finos e em um formato triangular ou de um bolinho de arroz. No entanto, há um anel em ambos os lados da superfície da palheta.
Tentei encaixar meu dedão e indicador pelos círculos de plástico e eles deslizaram na posição como se segura a palheta normalmente. Só que eu nunca vi esse tipo de palheta antes. Já vi palhetas de dedo ou de polegar que são presas em cada um dos dedos, mas nunca uma com dois círculos assim...
— Não toque nisso!
Uma voz veio da direção da porta, e quase me faz derrubar a palheta novamente. Mafuyu abriu a porta com seus ombros. Coloquei a palheta de volta no seu lugar original e desci da mesa.
— Bem, olha... Desculpe-me.
Olhei para baixo e percebi que ela estava segurando uma pequena sacola de plástico na mão esquerda... Isso é remédio?
— Você está sentindo dor em algum lugar?
Mafuyu se surpreendeu com a minha pergunta, e disse: — Não é nada.
Ela então empurrou a sacola com remédios e a palheta para baixo da almofada. Então ela acabou de voltar da enfermaria?
— O que você quer?
Mafuyu suspirou enquanto dizia isso, o que foi bem diferente do costume dela de gritar e me mandar embora. Na verdade, é muito mais assustador ela se comportar assim.
Fui direto até ela: — Estou aqui para me desculpar.
Assim que eu estava para pensar no que deveria dizer agora, Mafuyu falou:
— Por quê? Do que você está se desculpando? Conte pra todo mundo o que bem entender sobre mim.. Eu não dou a mínima.
— Olha, eu vou explicar tudo, então só me escute – eu disse isso enquanto segurava minha raiva. — Ontem, Tetsurou, que é meu pai por acaso, voltou para casa bêbado e me disse algumas fofocas que ele ouviu de outros críticos. Ele disse que alguns críticos na América escreveram coisas maldosas sobre você. Só que, ele nunca entrou em detalhes, então...
— Então não há razão para você se desculpar para mim!
Pude sentir meu rosto esquentando em um instante.
— Pare de entender as coisas como lhe é conveniente!
— O quê? Você está aqui para jogar sua raiva em mim?
— Não é isso, está bem? — Engoli minhas palavras e tentei ao máximo controlar minhas emoções e ficar tão calmo quanto possível. — Ok, entendi. Estou aqui para me desculpar por todos os críticos no mundo que só escrevem besteira.
Meu hábito de falar coisas sem sentido voltou à ativa novamente. Mafuyu piscou os olhos em choque, que foi então seguido por uma expressão de surpresa.
— Mas você não é um crítico, certo? Apesar de ter ouvido que seu pai é.
— Sou um crítico também.
Mafuyu inclinou a cabeça, seu olhar estava cheio de confusão.
— É verdade. Já ajudei o Tetsurou a escrever artigos usando o nome dele umas quatro ou cinco vezes, e esses artigos foram publicados em revistas de músicas. Por isso, eu deveria estar qualificado para pedir desculpas a você, certo?
Mafuyu mordeu seus lábios. Não muito depois, ela olhou para o chão e balançou a cabeça.
— Eu não entendo o que você está tentando dizer. Sobre o que você está falando?
Ela, de repente, disse isso com uma voz levemente trêmula.
— Por quê? Por que você está se desculpando comigo? Eu fiz tantas coisas maldosas com você.
— Então você percebeu isso?
— Idiota.
Mafuyu levantou seu rosto. Seus olhos estavam preenchidos com as cores fracas de um céu nublado, era o mesmo daquele dia quando eu a encontrei pela primeira vez. Era uma sensação úmida, como se uma tempestade se aproximasse.
— Eu não ligo para essas coisas bestas. Não importa o que escrevam sobre mim, ou como escrevam, não importa. Não é isso mesmo. Não foi isso... Foi isso...
Eu podia ouvir fracamente a voz agitada da Mafuyu à distância, e gradualmente comecei a ter dificuldades para relaxar. Eu estava pensando... Onde ela está exatamente? Essa garota inimaginável com uma aura de um fraco violeta ao redor deveria estar na minha frente, mas na verdade, quão longe de mim ela estava? Por que... Minha voz e mãos não conseguem alcançá-la?
— Por que você se importa comigo? Foi a mesma coisa daquela vez. Por que você me ajudou? Por favor, não se importe comigo. Irei desaparecer logo de qualquer forma.
Mafuyu se apoiou na sua guitarra e sentou-se a mesa, com seu rosto enterrado nos braços que abraçavam seus joelhos. Havia uma triste tempestade, mas a chuva caia apenas no seu corpo.
Eu saí da sala, mas ainda conseguia ouvir fracos sons da contínua tempestade. No entanto, o céu de maio estava irresponsavelmente claro, com apenas uma ou duas nuvens vagando em cima dos prédios.
Eu pensei comigo mesmo: Devo estar esquecendo alguma coisa; eu não estou percebendo algo importante sobre a Mafuyu. Mas, eu não tinha ideia do que era. Até então, eu pensei que estava começando a entender algo, mas esses sentimentos foram totalmente engolidos pelas nuvens de chuva imaginárias do lado dela. Arrastei meu corpo que parecia estar encharcado e andei de volta a sala de aula.
Eu estava praticando o meu baixo tarde da noite, depois de jantar sozinho. Só então, o som de um desabamento veio da direção da porta da frente.
— Oooh! É a maior felicidade possível, morrer enquanto sou enterrado no meio de toda essa música grandiosa de eras diferentes.
Na porta estava Tetsutou no seu terno raro, enterrado no meio de um monte de CDs derrubados. Ele estava murmurando para si mesmo, enquanto encarava o teto deslumbrado.
— Por favor, economize o suficiente para que eu possa viver uma vida boa antes de você morrer.
Falando nisso, me lembro de ter arrumado um pouco, não? Não importa o quanto eu tente arrumá-los, os CDs ainda começam a se amontoar cada vez mais altos, não há fim para isso. Eu reclamei enquanto cavava o Tetsurou para fora da bagunça.
— Após a minha morte você terá que colocar a <Fênix>1 de Stravinsky no meu caixão. Nem pense em tocar <Réquiem em Ré menor>2 ou algo assim, só toque <Paixão Segundo São Mateus>3! Eu irei então superar o recorde de Jesus Cristo e me ressuscitarei em dois dias!
— Não precisa fazer nada disso, simplesmente vá para o inferno e fique lá! Eu não disse para me ligar se fosse beber?
— Ah, hmm. Fazia um bom tempo desde que me encontrei com meus antigos colegas da Faculdade de Música pela última vez... Urgg...
As grandiosas músicas de eras diferentes, assim como o único terno social do Tetsurou, se sujaram com os fluidos de cheiro azedo dele. Esse aí já estava semimorto pela sua embriaguez.
— Ahh! Eu terei que mandar isso para lavagem.
1 http://www.youtube.com/watch?v=5tGA6bpscj8
2 http://www.youtube.com/watch?v=Zi8vJ_lMxQI
3 http://www.youtube.com/watch?v=Dl9lL_ou8c4
Depois de vomitar no banheiro, Tetsurou voltou com um rosto pálido. Mesmo depois de ver quão sujo ele deixou seu terno, conseguiu falar como se fosse algo que não tivesse nada a ver com ele. Só existe uma coisa que consegue fazer Tetsurou se vestir bem, e é um concerto. Devido a natureza do seu trabalho existem várias ocasiões em que é necessário que ele presencie um, e ainda assim ele só tem um terno. O que eu deveria fazer com ele? De qualquer forma, vou arrumar um copo de suco de limão quente para ele melhorar sua embriaguez.
— Uuuh, agora estou revigorado. Sou um cara de sorte. Minha esposa fugiu, mas Deus me presentou com um filho que sabe tomar conta de mim.
Oh mãe, por que você não lutou mais pela minha custódia?
— Eu já tive o suficiente de mulheres. Todos os meus cinco colegas são solteiros, e três deles já se divorciaram uma vez!
Tetsurou estava inventando suas próprias letras e cantando junto com a ária de Rigoletto, <A Mulher é Móvel>4. Cobri sua cabeça com o saco de lixo para calá-lo. Pense sobre os nossos vizinhos e pare de incomodá-los!
— É o mesmo para você com as garotas, né? Você já jogou fora a guitarra ou qualquer coisa que tenha sido, certo?
— Eu ainda estou tocando! Pare de me tratar como um idiota! — Apontei para o baixo no sofá
— Mas você é horrível tocando, não?
— Bem, me desculpe por isso! — Isso quer dizer que o som ainda pode ser ouvido lá de fora? Acho que é melhor eu não conectar meu baixo no amplificado no futuro, quando eu for praticar em casa.
— Ooh, por quê? Aquela garota é tão boa? Ah, é Ebisawa Mafuyu, certo? Você falou dela antes. Ela é uma boa garota, sim, sim. Sabe, existe um ditado besta no nosso ramo... Veja, no caso da capa dos álbuns de musicistas mulheres, a foto é tirada do seu perfil, e isso é feito especialmente no caso de pianistas. Se ela for um pouco mais bonita a foto é tirada da diagonal de seu rosto, caso ela seja belíssima a foto é tirada da frente do rosto. Estou nesse
4 http://www.youtube.com/watch?v=xCFEk6Y8TmM
trabalho há quinze anos e Mafuyu é a primeiro que eu vi ter a foto tirada de baixo para cima. Ei? O que está errado, pequeno Nao? Eu acertei a ferida?
— Cala a boca.
Peguei um copo d’água e joguei seu conteúdo no rosto do Tetsurou
— Que infernos você está fazendo... Pequeno Nao está realmente frio esses dias. Será que você me odeia?
— Olha, Tetsurou...
— Hmm?
— Você odeia o imposto de renda?
— Ahn? Por que a pergunta de repente?
— Só responda.
— Hmm, se você me perguntar se eu odeio ou não... Acho que seria melhor não existir, então talvez eu odeie isso. No entanto, já que eu venho pagando o imposto de renda há tanto tempo, acho que já me esqueci desse tipo de sentimento detestável.
— Hmm... É mais ou menos isso que eu sinto em relação a você.
— ...Eu posso chorar?
— Vá para fora se quer chorar.
Tetsurou colocou uma garra de uísque embaixo do braço e pareceu que ele realmente planejava sair. Pensando em como ele ia ser um incômodo para os vizinhos, eu o parei imediatamente. Aja como uma pessoa normal da sua idade e vá dormir!
— Mas... Não acho que exista uma chance entre você e Ebisawa Mafuyu. Porque... Bem, você sabe que é filho de um crítico musical e ela também sabe disso. Falando nisso, acabei de voltar de um concerto do Ebichiri no Japão. Eu havia o chamado para vir beber conosco, mas ele me disse que teria que aparecer num programa de TV ao vivo, então tinha que rejeitar o convite. Mas nos falamos durante o banquete e parece que ele estará no Japão esse mês, mas provavelmente voltará a viajar para lugares distantes em Junho. É provável que volte à América.
— Então, como eu dizia, você está entendo isso errado... Ahn?
Ebichiri, o pai da Mafuyu, voltou ao Japão?
Ele voltará a América em Junho. O Junho a que Mafuyu se refere... É esse?
— ...Então, e sobre a Mafuyu? Você ouviu algo relacionado a ela?
— Ahn?
— Nada. Então... Ela irá voltar para lá também?
Mais ou menos nessa época do ano passado Mafuyu talvez estivesse com seu pai, viajando para vários lugares na Europa e América por causa da turnê mundial? Mas, ela não faria algo tão sem propósito como se transferir para um colégio por um único mês, certo?
— Ela provavelmente não voltará ao piano, eu acho. Ouvi ainda hoje também, parece que os críticos no exterior escreveram algumas coisas bem desagradáveis sobre ela. Ela até participou em uma competição que não tinha nenhum vínculo com o Ebichiri e conseguiu ganhar. Mas ainda assim, ela ainda está presa à fama do seu pai.
— Ah...
Me lembrei daquele incidente onde Mafuyu estava me encarando cheia de hostilidade. “A própria existência de críticos é problemática. Eles sempre escrevem besteira”. Ela realmente disse algo assim antes.
— Mas bem, o estilo dela é convidativo a ataques. Como ela não estava animada o suficiente; como foi calmo demais; como sua apresentação das partes foi horrível; como sua música foi como insetos rastejando; ou como ela estava superconfiante na sua técnica... Até eu consigo pensar várias críticas desse tipo na hora, e se eu realmente quiser, eu provavelmente consigo escrever umas trinta páginas sobre isso. Mas seria bastante estúpido de minha parte fazer isso, não é como se todas as peças que você tocar serão consideradas boas só porque foram tocadas de forma vibrante, com energia.
— Então essa é a razão pela qual Mafuyu não toca o piano?
— Eu não acho que seja. Bem, também parece que eles escreveram coisas sobre sua vida privada mesmo que não sejam relacionadas à música, só por ser filha do Ebichiri. Veja bem, sua mãe é húngara e eles são divorciados.
— Ah... Então ela realmente é mestiça.
De repente eu me lembrei do dia que concertei seu tocador. Hungria.
— Ah, quer dizer que você não sabe sobre isso? Bem, nós deveríamos parar de falar sobre essas coisas. Sinto como se fosse um paparazzo que está rondando por notícias.
Tetsurou abriu a garrafa de uísque e bebeu diretamente dela. Eu já não tinha mais forças para pará-lo.
Quando eu era apenas um estudante do fundamental, pensando em viver minha vida tranquilamente aqui no Japão, Mafuyu já estava do outro lado do oceano embaixo do escrutínio de olhos curiosos e hostis ao seu redor e vivendo uma vida temível enquanto se segurava firmemente ao piano. Que tipo de vida é essa? Não consigo nem imaginar.
De qualquer forma, tudo volta ao problema inicial, de novo. Se ela realmente desistiu do piano, então por que ela toca guitarra?
No próximo dia, enquanto eu estava andando para a minha sala meus colegas estavam discutindo sobre o programa que passou ontem na TV.
— O show foi ao vivo?
— Sim, parece que ele já está de volta ao Japão.
— Uma entrevista?
— Eles estavam falando sobre coisas que eu não entendia. Não é como se eu ouvisse música clássica.
— Eles são parecidos?
— Nem um pouco. A Princesa provavelmente se parece com a mãe.
Só com pedaços da conversa eu imediatamente sabia sobre do que eles falavam, Ebichiri. Olhei de relance para o assento vazio da Mafuyu.
— O apresentador perguntou sobre a Princesa também.
— O pai e a filha não estão se dando bem, certo?
Estive pensando esse tempo todo, vocês sabem que Mafuyu chegará aqui logo mais e ainda assim continuam a fofocar sobre ela?
— Nao, seu pai foi colega de sala do Ebichiri, certo?
— ...Como você sabia?
— Maki disse! Ela também disse que quando Ebichiri ainda estava ensinando, seu pai estava sempre flertando com garotas.
Senhorita Maki... Por favor, não exagere essas histórias e saia espalhando-as por aí.
— O quê? Então Nao realmente conhecia a Princesa antes.
— Mas pelo que eu vi, Ebichiri insistia em mudar o assunto sempre que o apresentador perguntava algo sobre sua filha. Você sabe a razão?
— Hmm, olha só...
Tirei o baixo dos ombros e o apoiei na minha mesa. Então juntei toda a minha determinação e disse:
— Parem de perguntar coisas relacionadas a ela, tudo bem?
Todos estavam me olhando com expressões de surpresas. Eu fingi organizar meus livros e continuei:
— Só deixem-na em paz, ok? Ela é como uma gatinha selvagem e machucada, se vocês se aproximarem dela, ela pode acabar arranhando vocês, mas se a deixarem em paz, ela não irá incomodar ninguém. Aquela garota teve seus problemas durante a turnê mundial na América e tal, então...
Enquanto eu dizia tudo isso, percebi que as pessoas ao meu redor mudaram seu olhar para uma direção estranha. Tive a sensação de uma picada na minha omoplata. Me virei e vi Mafuyu em pé na porta da sala. Talvez ela tenha herdado isso da sua mãe húngara? Havia um leve rubor aparecendo em sua pele pálida. Seus grandes olhos estavam me encarando, não parecia que eram olhos de raiva, mas ao invés disso, ela estava chocada.
— ...Ah, olha, eu não...
Eu não tinha certeza na hora se eu estava tentando me desculpar.
— Você certamente sabe como espalhar essas coisas.
Ela murmurou e caminhou para o seu assento. Todos ao meu redor já haviam fugido para todos os lados.
— Não é o que você pensa.
— Por favor, não fale comigo.
A voz da Mafuyu era como uma tesoura, cortando a distância entre nós. Só pude permanecer quieto. Os que estavam ao meu redor há pouco tempo estavam agora me lançando olhares de apreensão.
Chiaki correu para dentro da sala só depois do sinal já ter tocado. Quando ela passou por mim e Mafuyu, também percebeu a atmosfera perigosa.
— O que houve? — Ela olhou rapidamente para mim e então para Mafuyu – Vocês estão brigando de novo?
— Eu nunca tive uma briga com ele antes, então por favor não use o termo “de novo”.
Mafuyu disse enquanto virava o rosto.
Chiaki estava prestes a dizer algo, mas puxei sua manga e implorei para que não dissesse nada.
Pode se esquecer de falar, Mafuyu nem olhou na minha direção uma vez. Ela imediatamente saiu correndo da sala assim que o intervalo começou.
— Ela está brava...
— A Princesa está brava...
Todos os sussurros, assim como os olhares, dos meus colegas haviam convergido em mim. Dessa vez realmente era minha culpa, sem escolha, me levantei e saí da sala.
Andei para o pátio e cheguei à sala de treino do antigo prédio de música. Não havia cadeado na porta, e ela também estava entreaberta. Eu quietamente espiei dentro da sala e não vi ninguém. O que estava acontecendo aqui?
Entrei na sala e vi a guitarra conectada no amplificador, com a palheta abandonada encima da mesa. Parecia que alguém havia corrido para fora da sala às pressas após entrar. O que significa que não deve ter problema eu esperar por ela aqui, certo? Então me lembrei de que não pensei em como eu iria me desculpar com ela. Qual a razão pela qual a Mafuyu estar brava comigo?
Assim que me sentei na almofada da mesa, pensando em como eu deveria me desculpar, sem querer derrubei no chão a palheta com um movimento das minhas mãos. Essa é provavelmente a palheta que ela usa. Mas foi só quando a peguei que percebi, a forma da palheta é bastante estranha.
Tipicamente falando, palhetas são pedaços de plásticos finos e em um formato triangular ou de um bolinho de arroz. No entanto, há um anel em ambos os lados da superfície da palheta.
Tentei encaixar meu dedão e indicador pelos círculos de plástico e eles deslizaram na posição como se segura a palheta normalmente. Só que eu nunca vi esse tipo de palheta antes. Já vi palhetas de dedo ou de polegar que são presas em cada um dos dedos, mas nunca uma com dois círculos assim...
— Não toque nisso!
Uma voz veio da direção da porta, e quase me faz derrubar a palheta novamente. Mafuyu abriu a porta com seus ombros. Coloquei a palheta de volta no seu lugar original e desci da mesa.
— Bem, olha... Desculpe-me.
Olhei para baixo e percebi que ela estava segurando uma pequena sacola de plástico na mão esquerda... Isso é remédio?
— Você está sentindo dor em algum lugar?
Mafuyu se surpreendeu com a minha pergunta, e disse: — Não é nada.
Ela então empurrou a sacola com remédios e a palheta para baixo da almofada. Então ela acabou de voltar da enfermaria?
— O que você quer?
Mafuyu suspirou enquanto dizia isso, o que foi bem diferente do costume dela de gritar e me mandar embora. Na verdade, é muito mais assustador ela se comportar assim.
Fui direto até ela: — Estou aqui para me desculpar.
Assim que eu estava para pensar no que deveria dizer agora, Mafuyu falou:
— Por quê? Do que você está se desculpando? Conte pra todo mundo o que bem entender sobre mim.. Eu não dou a mínima.
— Olha, eu vou explicar tudo, então só me escute – eu disse isso enquanto segurava minha raiva. — Ontem, Tetsurou, que é meu pai por acaso, voltou para casa bêbado e me disse algumas fofocas que ele ouviu de outros críticos. Ele disse que alguns críticos na América escreveram coisas maldosas sobre você. Só que, ele nunca entrou em detalhes, então...
— Então não há razão para você se desculpar para mim!
Pude sentir meu rosto esquentando em um instante.
— Pare de entender as coisas como lhe é conveniente!
— O quê? Você está aqui para jogar sua raiva em mim?
— Não é isso, está bem? — Engoli minhas palavras e tentei ao máximo controlar minhas emoções e ficar tão calmo quanto possível. — Ok, entendi. Estou aqui para me desculpar por todos os críticos no mundo que só escrevem besteira.
Meu hábito de falar coisas sem sentido voltou à ativa novamente. Mafuyu piscou os olhos em choque, que foi então seguido por uma expressão de surpresa.
— Mas você não é um crítico, certo? Apesar de ter ouvido que seu pai é.
— Sou um crítico também.
Mafuyu inclinou a cabeça, seu olhar estava cheio de confusão.
— É verdade. Já ajudei o Tetsurou a escrever artigos usando o nome dele umas quatro ou cinco vezes, e esses artigos foram publicados em revistas de músicas. Por isso, eu deveria estar qualificado para pedir desculpas a você, certo?
Mafuyu mordeu seus lábios. Não muito depois, ela olhou para o chão e balançou a cabeça.
— Eu não entendo o que você está tentando dizer. Sobre o que você está falando?
Ela, de repente, disse isso com uma voz levemente trêmula.
— Por quê? Por que você está se desculpando comigo? Eu fiz tantas coisas maldosas com você.
— Então você percebeu isso?
— Idiota.
Mafuyu levantou seu rosto. Seus olhos estavam preenchidos com as cores fracas de um céu nublado, era o mesmo daquele dia quando eu a encontrei pela primeira vez. Era uma sensação úmida, como se uma tempestade se aproximasse.
— Eu não ligo para essas coisas bestas. Não importa o que escrevam sobre mim, ou como escrevam, não importa. Não é isso mesmo. Não foi isso... Foi isso...
Eu podia ouvir fracamente a voz agitada da Mafuyu à distância, e gradualmente comecei a ter dificuldades para relaxar. Eu estava pensando... Onde ela está exatamente? Essa garota inimaginável com uma aura de um fraco violeta ao redor deveria estar na minha frente, mas na verdade, quão longe de mim ela estava? Por que... Minha voz e mãos não conseguem alcançá-la?
— Por que você se importa comigo? Foi a mesma coisa daquela vez. Por que você me ajudou? Por favor, não se importe comigo. Irei desaparecer logo de qualquer forma.
Mafuyu se apoiou na sua guitarra e sentou-se a mesa, com seu rosto enterrado nos braços que abraçavam seus joelhos. Havia uma triste tempestade, mas a chuva caia apenas no seu corpo.
Eu saí da sala, mas ainda conseguia ouvir fracos sons da contínua tempestade. No entanto, o céu de maio estava irresponsavelmente claro, com apenas uma ou duas nuvens vagando em cima dos prédios.
Eu pensei comigo mesmo: Devo estar esquecendo alguma coisa; eu não estou percebendo algo importante sobre a Mafuyu. Mas, eu não tinha ideia do que era. Até então, eu pensei que estava começando a entender algo, mas esses sentimentos foram totalmente engolidos pelas nuvens de chuva imaginárias do lado dela. Arrastei meu corpo que parecia estar encharcado e andei de volta a sala de aula.
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